INTRODUÇÃO
Camila
Batista Varani, filha de Júlio César, Senhor
de Camerino, monja Clarissa do Mosteiro de Santa Maria Nova
(atualmente Santa Clara) em Camerino, escreveu este breve tratado por
ordem expressa de Jesus, em agosto de 1448, e o endereçou à Irmã
Pacífica Benedetti, então sua abadessa.
A
origem desta obra é narrada pela própria Autora
em sua Autobiografia[1].
Eis o que ela nos conta: “Um dia, mal havia me colocado em oração,
logo me foi dito: ‘Vá e escreva aquelas dores mentais da Paixão
que tu sabes’. Eu me desculpei e disse: ‘Meu Senhor, não sei nem
mesmo por onde começar. Pois não quero dizer de nenhum modo que
estas coisas são minhas.’ Foi-me dito: ‘Comece assim: Houve uma
alma muito desejosa de nutrir-se...’ e etc...’ E foram-me ditadas
duas páginas.
Logo
levantei-me e obedeci a tal ordem. As palavras eram-me tão
abundantes que não pensava naquilo que queria dizer”.
A
Bem-aventurada, na sua profundíssima humildade, termina com uma
amarga reflexão: “Quão penosa notícia foi para mim aquela ordem,
quase como se Jesus quisesse dizer-me: ‘Eu vejo que o vaso de tua
alma é muito sujo. Assim, exala o bálsamo das minhas dores mentais,
expande-o sobre os outros, porque a ti, infecta, não podem mais
agradar...’ Eis porque as escrevi”[2].
AS
DORES MENTAIS DE JESUS NA SUA PAIXÃO
As
páginas seguintes se referem às Dores mentais (dores da alma, do
coração) de Cristo bendito.
Após
voltar de Urbino a Camerino, falava seguidamente com minhas co-irmãs,
para a consolação delas e minha. Dizia ter ouvido estas
considerações de uma monja de Urbino, para que não pensassem que
fosse farinha do meu saco. Irmã Pacífica muitas e muitas vezes me
pediu para colocá-las por escrito. Protelava, dizendo que escreveria
somente após a morte daquela santa irmã.
Quando,
por ordem expressa de Jesus, preparei-me para escrever, enderecei
estas páginas à Irmã Pacífica Benedetti, que era então a minha
abadessa. Escrevi ter recebido a revelação de uma piedosa monja de
Urbino. Para dar crédito à ficção, ia repetindo: “aquela alma
santa, aquela alma bem-aventurada...me disse assim”.
*******************
Estas
devotíssimas considerações sobre as dores mentais de Jesus Cristo
na sua Paixão foram comunicadas pelo próprio Deus, pela sua
misericórdia e graça, a uma santa monja de nossa Ordem de Santa
Clara.
Esta
irmã falava seguidamente comigo. Eu as dirijo fielmente para a
utilidade das almas enamoradas da Paixão de Jesus Cristo.
Primeira
dor mental de Jesus: pelas
almas que se perdem
Houve
uma alma muito desejosa de nutrir-se e saciar-se dos alimentos
amaríssimos da Paixão do amantíssimo e doce Jesus, a qual, após
muitos anos de ardente oração, por Sua graça admirável, foi
introduzida pelo próprio Jesus no mar amaríssimo de seu Coração
apaixonado.
Ela
me dizia — enfim — que Jesus muitas e muitas vezes a havia imerso
naquele imenso mar, ao ponto de fazê-la implorar: “Não mais,
Senhor, não mais, que tanto sofrimento não posso suportar”. Isso,
creio, porque Jesus sempre concede com abundância e benignidade a
quem lhe pede com humildade e perseverança.
Aquela
alma bendita me dizia que na oração pedia seguidamente a Deus com
grande intensidade: “Ó meu Senhor, eu te peço que tu me
introduzas no santíssimo tálamo de tuas dores mentais. Mergulha-me
naquele mar amaríssimo, pois ali desejo morrer se agrada a ti, doce
vida e amor meu. Diga-me Jesus, esperança minha: quanto foi grande a
dor do teu amantíssimo coração ?”
E
Jesus bendito lhe dizia: “Sabe quanto foi grande a minha dor? Foi
grande como é grande o amor que tenho pelos seres humanos”.
Aquela
monja me confiou que já outras vezes Deus a havia feito compreender,
na medida do possível, a imensidão de seu Amor pelos seres humanos.
Revelou-me coisas tão belas e devotas; porém ser-me-ia muito
demorado escrevê-las.
Quando
o Senhor lhe dizia: “Tão grande foi a dor quanto é grande o Amor
que tenho pelos seres humanos”, pela intensidade de amor que Deus
lhe comunicava, caía em delírio; era constrangida a apoiar a cabeça
por causa da fadiga que lhe apertava o coração. Somente após
bastante tempo recuperava as forças e então pedia assim: “Ó meu
Deus, tu me disseste quão grande foi a tua dor, dize-me agora
quantas penas sofreste no teu coração?”
E
Jesus docemente lhe respondia: “Sabes, minha filha, foram
inumeráveis e infinitas, porque inumeráveis são as almas que se
separam de mim por causa do pecado. São membros que se desarticulam
de mim, sua Cabeça, tantas vezes quantas pecam gravemente. Esta é a
pena mais cruel que sofro no meu coração: a desarticulação dos
meus membros. Pensa na dor atroz daquele que é martirizado, ao qual
são arrancados os membros. Considera que martírio foi o meu,
à visão de tantas almas perdidas, separadas de mim.
A
separação de um membro espiritual é tanto mais dolorosa quanto a
alma é mais preciosa do que o corpo. A preciosidade da alma nem tu
nem nenhuma pessoa poderá compreender plenamente. Somente eu conheço
a nobreza da alma e a vileza e miséria do corpo; porque somente eu
criei a uma e a outro. Nem tu, nem outra criatura nenhuma será capaz
de compreender a tortura crudelíssima sofrida pela separação de
membros tão caros a mim.
Quanto
mais grave o pecado, mais atroz é a minha pena. Sabendo que a
vontade perversa deles será eterna e, por isso, eterno o seu
tormento, era imensa a angústia que me atravessava o coração.
Aquelas almas diletas nunca mais estarão unidas e conjugadas a mim,
sua Cabeça. Este “nunca, nunca, nunca mais” é aquilo que
atormenta e atormentará eternamente, mais do que qualquer outro
sofrimento, aquelas almas desventuradas.
Este
“nunca, nunca” me causava uma pena tão aguda, que teria
escolhido viver, não só uma vez, mas infinitas vezes, todas as
separações que foram, que são e serão. Vivê-las-ias todas
para dar, ainda que fosse a uma só alma, a felicidade de reunir-se
aos eleitos que viverão eternamente em espírito de vida, procedente
de mim que dou a vida a cada ser vivo.
Considera
quanto me é preciosa uma alma se, para aproximá-la de mim, quereria
viver todas as minhas dores, não uma vez, mas infinitas vezes. E
este “nunca, nunca” aflige tanto aquelas pobres almas que
sofreriam mil infinitas penas para poder reunirem-se a mim, sua
Cabeça, por uma vez ou ao menos por um instante. A intensidade da
pena é, pois, proporcional à gravidade da culpa. Assim foi o meu
sofrimento pela separação.
Como
este “nunca, nunca” afligia a mim mais do que tudo, assim a minha
justiça quer que este “nunca, nunca” atormente eternamente os
perdidos mais do que qualquer outro mal. Pensa quantas dores
repercutiram no meu coração durante a minha Paixão até minha
morte por todas as almas perdidas”.
Então
— assim continuava aquela alma bendita — nascia em minha alma um
forte desejo, por divina inspiração, de expor minha perplexidade.
Por isso, com grande temor e reverência, e junto a grande
simplicidade e confiança, lhe disse: “Ó meu doce, doloroso Jesus.
Ouvi dizer que tu, meu apaixonado Deus, sentiste em ti as penas de
todos os perdidos. Queria saber se tu sofreste verdadeiramente todos
os tormentos do inferno como: frio, calor, fogo, os espasmos dos
membros batidos e despedaçados pelos espíritos infernais. Dize-me,
Senhor meu: sentiste tudo isso? Meu Jesus, derrete meu coração só
ao pensar em tua grande bondade. Tu falas com tanta doçura e
condescendência a quem te procura e te quer!”
Então
Jesus, benigno, lhe respondia graciosamente e a ela parecia que as
suas perguntas não o desagradassem. “Minha filha, eu não senti
todos os tormentos dos perdidos do modo que disseste, pois eram
membros mortos, arrancados de mim, sua Cabeça. Eis um exemplo: se
tivesses uma mão ou qualquer outro membro arrancado de ti, tu
sentirias grande, indizível dor, enquanto lhe é cortado ou
arrancado. Mas quando aquele membro fosse separado de todo, mesmo se
batido, colocado no fogo, despedaçado por cães e lobos, não
sentirias nenhuma dor, pois é membro morto, pútrido, completamente
separado do corpo. Afligir-te-ias, porém, vendo-o batido, queimado,
devorado, etc., pois é tua carne.
Assim
foi para mim. Enquanto durou a separação, mas juntamente a
esperança de vida, senti em mim infinita pena e também todos os
afãs que aquelas almas sofreram nesta vida; pois até a morte deles
não diminuía a esperança de que poderiam se reunir a mim. Mas
depois da morte, não senti mais pena alguma, porque então
eram membros mortos, separados e excluídos eternamente de viverem em
mim, verdadeira Vida. Profundo sofrimento, porém, era ver no fogo
eterno, entre indizíveis tormentos, almas que foram meus membros.
Esta
é a dor mental que sofri pelos perdidos”.
segunda
dor mental de Jesus: pelos
eleitos
“A
outra dor que me perpassou o coração foi pelos eleitos. Sabes,
filha, a mesma dor que provei pelos perdidos me dilacerou também
pelos eleitos, pois pecando mortalmente se separaram temporariamente
de mim. Como era grande meu amor pelos membros eleitos, que com boas
obras se uniam a mim — sua Vida — e de mim se separavam pecando,
do mesmo modo era grande a dor que eu sentia.
A
minha dor diferia daquela que sentia pelos perdidos somente nisto:
para os perdidos, membros mortos e desligados de mim não sentia pena
alguma; com os eleitos, em vida e após a morte, condividia cada
sofrimento e amargura, isto é, os tormentos de todos os mártires,
as penitências de todos os penitentes, as tentações dos tentados,
as doenças, as perseguições, os exílios, etc. Senti vivamente
cada pena dos eleitos como tu sentirias se te furassem um olho, uma
mão, um pé.
Pensa
quantos foram os mártires e quantas as torturas que cada um deles
sofreu, quantos foram os sofrimentos de todos os eleitos e a
variedade das suas penas. Se tivesses mil olhos, mil mãos, mil pés
e mil outros membros e em cada um sentisse mil penas, não seria
refinado suplício?
Os
meus membros, minha filha, não foram nem mil, nem milhares, mas
infinitos. As várias penas não foram milhares, mas infinitas,
porque inumeráveis foram os sofrimentos dos mártires, das virgens,
dos confessores e de todos os outros eleitos.
Como
jamais poderás compreender quais e quantas são as formas de
beatitude e glória e os prêmios preparados no Paraíso para os
justos, assim não é possível que compreendas quais e quantas são
as penas mentais sofridas por mim pelos eleitos. Por justiça divina,
beatitude, glória e prêmios serão proporcionais às penas
sofridas.
Eu
senti sobre mim em quantidade e qualidade toda a intensidade das
penas que os justos sofreram no Purgatório. E isto porque os eleitos
não eram membros pútridos, separados de mim como os perdidos. Eram
membros vitais que viviam em mim, Espírito de Vida, prevenidos com a
minha graça e benção.
Como
tu sentirias viva dor por cada batida ou rasgo feito a um membro teu,
que está deslocado e despedaçado até ser colocado no lugar, assim
eu sentia em mim todos os tormentos que no Purgatório sofreram os
meu membros eleitos, pois eram vivos e destinados a reunir-se a mim,
sua Cabeça.
Entre
as penas infernais, e aquelas do Purgatório, há somente esta
diferença: aquelas são eternas e estas temporárias; no Purgatório
as almas sofrem de boa vontade, com alegria e paz, rendendo graças a
mim, suma justiça. Isto queria dizer-te da pena mental sofrida pelos
eleitos”.
Quisesse
Deus que pudesse recordar-me das devotas palavras que ouvi daquela
alma santa enquanto, chorando amargamente, dizia-me ser capaz de
compreender — na medida que era agradável ao Senhor — a
gravidade e o horror do pecado. Quanta pena, quanto martírio havia
dado ao seu amantíssimo Jesus, separando-se dele, sumo Bem, para
unir-se às coisas vis deste mundo!
Recordo-me
de que, entre muitas lágrimas, assim se exprimia: “Ó meu Deus,
quão grandes e infinitas penas te dei, salva-me, que sou uma
condenada. Ó Senhor, nunca teria pecado, nem mesmo venialmente, se
soubesse o quanto o pecado te ofende. Porém, sei que faria até
pior, se tua mão não me sustivesse. São tantas estas tuas penas,
meu doce e benigno Senhor, que tu não pareces mais um Deus, mas
antes um ‘inferno’ de penas amorosas”. Assim, por santa
simplicidade, aquela alma bendita muitas vezes o chamava.
Terceira
dor mental de Jesus: pela
santíssima virgem, sua mãe
Então,
o amorosíssimo e bendito Jesus assim continuava: “Escuta, minha
filha. Devo dizer-te coisas amaríssimas; a dor da minha Mãe
Imaculada foi o agudo punhal que passou e traspassou minha alma. Ela
esteve tão aflita e amargurada por minha Paixão e Morte como
nenhuma pessoa viva esteve ou estará.
Por
isso no Paraíso nós[3] elevamos
Maria, sublimada e premiada sobre todas as criaturas humanas e
angélicas. Agimos sempre assim. Quanto mais a criatura é humilhada,
aflita, aniquilada neste mundo por meu Amor, tanto mais por divina
justiça é elevada e glorificada no Reino dos Céus.
Como
neste mundo não houve pessoa mais angustiada do que minha santíssima
Mãe, assim no Céu não há e nunca haverá alguém semelhante a ela
na glória.
Como
na terra a minha Mãe apenas foi a segunda depois de mim nas aflições
e penas, assim o é também no Céu em poder e glória, porém sem a
minha divindade, da qual partícipes somente Nós, Pai, Filho e
Espírito Santo. Todos os sofrimentos e dores que eu — homem Deus —
suportei, sofreu-os também a minha diletíssima Mãe. Eu em grau
mais alto e perfeito, porque Deus e homem, e ela como simples
criatura.
Tanto
me angustiou a sua dor que, se fosse agradável ao meu Eterno Pai,
escolheria sentir em dobro todos os tormentos da Paixão para tirar
de minha Mãe cada sofrimento. Mas, embora implorasse com inúmeras
lágrimas ao Pai Celeste esta graça, não me foi concedida, pois o
meu infinito martírio deveria acontecer sem nenhuma consolação”.
Então
aquela santa monja confiava a mim, Irmã Batista, que se lhe
despedaçava o coração, considerando a dor imensa da gloriosíssima
Virgem, e não conseguia murmurar outra coisa além destas palavras:
“Ó Mãe de Deus, não quero mais chamar-te Mãe de Deus, mas Mãe
das penas, Mãe das dores, Mãe de todas as aflições que jamais se
poderão dizer nem pensar. Se o teu Filho é um abismo de dor, com
que outro nome poderei chamar-te, a não ser Mãe das dores?”
E
assim continuava: “Não mais, meu Senhor, não mais! Não digas
mais nada das dores de tua bendita Mãe, pois sinto não podê-las
suportar. Basta-me isto por toda a vida, mesmo se devesse viver por
mil anos”.
quarta
dor mental de Jesus: pela
enamorada discípula madalena
Jesus,
vendo aquela monja tão angustiada, não insistiu mais sobre as penas
de sua Mãe e começou a dizer: “Podes tu medir as dores que provei
pelas penas e aflições de minha dileta discípula e caríssima
filha Maria Madalena? Nem tu, nem outros poderão compreender a
minha perfeição, Mestre amante, e a dileção e a bondade dela,
discípula amada. Talvez, quem amasse alguém e fosse correspondido
pudesse entender alguma coisa, se tivesse a experiência de um amor
santo e espiritual. Mas um amor assim perfeito não existe sobre a
terra porque não se encontrará mais um tal Mestre e mesmo uma tal
discípula.
Excetuada
minha santíssima Mãe, não existe pessoa que mais sofreu pela minha
Paixão e morte, como Maria Madalena. Se minha Santíssima Mãe lá
estivesse, depois de minha Ressurreição, apareceria a ela, antes de
Madalena. Como Madalena foi a mais aflita depois de minha bendita
Mãe, assim, depois de minha dolorosíssima Mãe foi ela a mais
consolada.
No
doce repouso que João, ‘meu dileto discípulo’ gozou sobre o meu
sacratíssimo Coração na última Ceia, eu o fiz prever a minha
gloriosa Ressurreição e o imenso fruto dado aos homens pela minha
Paixão e Morte. Embora João sofresse mais do que todos os
outros discípulos, não penses que a sua dor superasse aquela da
enamorada Madalena. Ela não possuía a capacidade de compreender
coisas altas e profundas como João, o qual, embora sofrendo, não
impediu a minha Paixão e Morte, porque conhecia o grande bem que
viria depois.
Não
era assim para Madalena. Vendo-me morto, parecia a ela que faltasse o
céu e a terra, porque somente eu era sua esperança, a sua paz e
toda a sua consolação. Ela, ‘sem ordem nem medida’ me amava,
por isso ‘sem ordem nem medida’ foi a sua dor, que eu conheci
plenamente e senti em meu ânimo, pois dela recebi toda a ternura que
pode vir de um amor santo e espiritual; ela me amava perdidamente.
Os
meus discípulos, ainda não desprendidos das coisas terrenas,
retornaram às suas redes, mas esta santa pecadora não retornou ao
mundo, mas totalmente inflamada e flamejante de santo desejo, não
podendo mais ver-me vivo, ansiosamente me procurava morto. Nenhuma
criatura poderia, então, amar e gozar, a não ser o seu Mestre, vivo
ou morto.
Vês
que, para reencontrar-me morto, Madalena deixou até mesmo a
companhia e a presença viva de minha diletíssima Mãe, que é a
mais amável que se possa ter neste mundo. Para Madalena, não
aparecia nada, nem mesmo a visão e as doces conversas com os Anjos.
Assim cada alma, quando me ama intensamente, não se aquieta e
nem repousa com nenhuma outra presença, mas somente em mim, seu Deus
amado.
Tão
grande foi a dor desta minha discípula dileta, que muitas vezes
teria morrido se não a sustentasse com minha Força e Graça. A sua
dor imensa repercutia agudamente no meu apaixonado coração e
intensificava minhas penas. Não permiti, porém, que lhe fosse
aliviada tanta dor, porque queria fazer dela aquilo que realmente ela
foi: a apóstola dos Apóstolos. Foi ela, com efeito, que anunciou a
verdade de minha gloriosa Redenção aos Apóstolos, como estes o
fizeram, depois, a todo mundo.
Queria
fazer dela, como de fato a fiz, modelo, espelho e norma de vida
contemplativa vivida na solidão e no segredo. Nesta contemplação
escondida, Madalena viveu trinta e três anos, sentindo e gozando os
últimos efeitos do amor, o quanto é possível gozar e sentir nesta
vida mortal”.
quinta
dor mental de JESUS: pelos
amados discípulos
“Outra
dor que me feria a alma era a lembrança do colégio dos Apóstolos;
colunas do céu, fundamento da minha Igreja, ovelhinhas sem pastor.
Vi-os andarem dispersos, sentia todas as penas e os martírios que
por mim suportariam. Nunca um pai amou tanto seus próprios
filhos, nem irmão aos irmãos, nem mestre os próprios discípulos,
quanto eu amei estes meus amantíssimos filhos, irmãos e discípulos,
os Apóstolos.
Embora
eu tenha amado e ame sempre todas as criaturas com amor infinito,
todavia amava com amor particular os irmãos com os quais vivi.
Assim, particular dor sofreu por eles a minha apaixonada alma. Mais
por eles do que por mim, repeti aquelas amargas palavras: ‘A a
minha alma está triste até a morte’.
Deixava-os
privados de seu pai e mestre; esta separação me angustiava tanto,
quase como uma segunda morte. Seria bem duro de coração quem não
chorasse, relembrando e meditando as doces palavras que dirigi aos
meus Apóstolos no último discurso na Ceia do adeus. Aquelas
palavras brotavam do profundo do meu coração. Parecia que quisessem
arrebentar no peito por causa do amor.
Vi
quem seria crucificado vivo por causa do meu nome, quem seria
esfolado vivo, quem seria decapitado, todos aqueles que por amor a
mim sofreriam cruéis martírios. Esta visão foi de grande dor para
mim.”
E
Jesus continuava: “Pensa, minha filha, quanto sofrerias se uma
pessoa amada santamente por ti, fosse injuriada e maltratada por tua
causa. Mas eu, para meus Apóstolos, fui causa não somente de
injúria, mas de atrozes torturas e de morte; não somente para um,
mas para todos. Não há imagem que possa mostrar-te a amplitude
desta minha dor.”
Sexta
dor mental de Jesus: pelo
amado discípulo judas, o traidor
“Uma
outra dor íntima traspassava o meu coração apaixonado. Uma faca
com três pontas agudíssimas e envenenadas me penetrava na alma
amargurada: a ingratidão e a perfídia de meu discípulo traidor
Judas, por mim tão amado; a dureza e esquecimento de meu povo eleito
e predileto, o povo judeu, a cegueira e maldade de todas as criaturas
que existiram, existem e existirão.
Considera
quanto foi grande a minha pena pela ingratidão de Judas; eu o havia
escolhido entre o número dos meus apóstolos, perdoei todos os seus
pecados, fiz dele realizador de milagres, dispensador dos bens de
nossa família apostólica. Sempre demonstrei-lhe particular amor
para desviá-lo de seus maus propósitos. Mas quanto mais amor lhe
dedicava, sempre mais maquinava traição. Quanto me amargurava a
cegueira e dureza de seu coração! Quando, humilde e amorosamente,
inclinei-me diante dele para lavar-lhe os pés, o meu coração não
pode reprimir um pranto cheio de amargura.
E
dos meus olhos saiam rios de cálidas lágrimas, enquanto minha alma
ia repetindo: ‘Ó Judas, que te fiz para que tu me traias? Ó
Judas, desventurado discípulo, é este o último sinal de amor;
porque tu te afastas assim do teu pai e mestre? Ó judas, se queres
trinta denários, porque não vais até minha e tua Mãe? Ela venderá
a si mesma para libertar a ti e a mim deste grande perigo e da morte.
Ó discípulo ingrato, eu com tanto amor te beijo os pés e tu, com
vil traição me beijarás a boca? Que troca! Choro tua perdição,
caro e dileto filho, não a minha paixão e morte, pois para isso vim
a este mundo.
Estas
palavras e outras semelhantes dirigia a ele com o coração,
regando-lhe os pés com abundantes lágrimas. Mas ele não se dava
conta, porque eu estava ajoelhado à sua frente com a cabeça
inclinada, no ato de lavar-lhe os pés, e meus longos cabelos cobriam
meu rosto repleto de lágrimas.
Mas
meu amado discípulo João, que acompanhava e notava cada ato meu,
percebeu bem o meu amoroso pranto. Compreendeu que cada lágrima
minha procedia da ternura do amor. Como um pai, perto da morte, quer
prestar um extremo serviço ao filho único, assim também eu o fiz.
Lavei e beijei os pés de Judas, meu filho, e com grande ternura os
aproximei e os estreitei junto à minha sacratíssima face.
João,
águia que voa mais alto que todos, mais morto que vivo por causa do
estupor e da admiração, guardava todos os meus gestos. Alma
sensibilíssima, foi o último diante do qual me ajoelhei para
lavar-lhe os pés. Quando me viu ao chão, abraçou-me e ficou
estreitado junto a mim, fundindo as suas lágrimas às minhas. Sem
voz me falava, dizendo: ‘Ó caro mestre, irmão, pai, meu Senhor e
meu Deus, como pudeste lavar e beijar com tua sacratíssima boca os
pés daquele cão traidor? Ó meu Jesus, querido mestre! Tu nos
deixas um exemplo perfeito, mas nós pobrezinhos, que faremos sem ti,
que és todo o nosso bem? Que fará, que dirá a tua desventurada Mãe
quando lhe contar esta tua infinita humildade? A tua bondade me
despedaça o coração. Porque queres lavar-me estes pés cheios de
lama e pó e os queres beijar com tua dulcíssima boca? Ó meu Deus,
estes novos sinais de amor são para mim sinais certos de infinita
dor’. Ditas estas e outras palavras, que comoveriam um coração de
pedra, com muita vergonha e reverência, João abandonou os pés
entre as minhas mãos e deixou-se lavar”.
E
voltando-se sempre àquela santa monja, Jesus concluiu assim: “Disse
a ti estas coisas para fazer-te compreender a profunda dor que me
afligiu pela ingratidão de Judas, o traidor, que recompensou com vil
esquecimento os sinais de particular preferência que lhe dei sempre
até à última hora”.
Sétima
dor mental de Jesus: por
seu predileto povo
Judaico
“Pensa,
minha filha, quanto me afligiu e traspassou a alma a ingratidão e
obstinação do povo judaico. Eu o fiz grande; povo santo e
sacerdotal, escolhido como minha parte e herança sobre todos os
povos da terra. Libertei-o da escravidão do Egito, das mãos do
Faraó. Guiei-o a pés secos através do Mar Vermelho. Fui para ele
coluna de nuvens durante o dia e luz durante a noite, alimentei-o
durante quarenta anos com o maná. Sobre o Monte Sinai lhes dei a
santa lei; tornei-o vitorioso contra seus inimigos. No meio daquele
povo tomei carne humana; por toda a minha vida eduquei-os, ensinando
o caminho do Céu. Naqueles anos fiz para eles vários milagres:
iluminei os cegos, fiz ouvir os surdos, curei os paralíticos e enfim
dei novamente a vida também aos mortos.
Quando
entendi que com tanto furor invocavam a libertação de Barrabás e
queriam que eu fosse crucificado e morto, parecia que meu coração
arrebentasse.
Quem
não experimenta não pode compreender, minha filha, quanto é
dilacerante receber todo o mal justamente daqueles aos quais se deu
todo o bem. Quanto é duro e amargo ouvir urrar em alta voz: ‘Viva!
Viva!’ para quem é merecedor de mil penas e ‘crucifica,
crucifica — morra, morra’ para quem é inocente e sumo
benfeitor”.
Oitava
dor mental de Jesus: pela ingratidão de todas as criaturas
Aquela
alma santa me confiava que sentia nascer no coração sentimentos de
grande humildade e sinceramente confessava a Deus e a toda a corte
celeste ter recebido mais dons e benefícios do que Judas e que todo
o povo judeu juntos. Pior e mais ingrata do que Judas era ela por
trair Jesus; mais cruel e obstinada que o ingrato povo eleito, ela o
havia crucificado e levado à morte.
Considerando
isto, aquela santa monja colocava espiritualmente sua alma sob os pés
do perdido e maldito Judas, e daquele lugar abissal gritava e chorava
em direção ao seu amado Senhor: “Ó meu benigno Jesus, como
poderei agradecer tudo o que sofreste por mim? Tratei-te mil e mil
vezes pior que Judas. Tu fizeste a ele teu discípulo, e a mim, tua
filha e esposa. Perdoaste a ele os seus pecados e a mim, por tua
bondade e graça, tudo perdoaste, devolvendo-me a primeira
inocência[4].
Tornaste-o dispensador das coisas materiais e a mim, ingrata,
dispensaste tantos dons e graças do teu tesouro espiritual. A ele
deste o dom dos milagres, e por mim operaste o sumo milagre de
conduzir-me voluntariamente neste lugar santo[5].
Ó
meu Jesus, te vendi e te traí não somente uma vez, mas mil
infinitas vezes. Ó meu Deus, tu o sabes: pior que Judas te traí com
um beijo quando, sob a aparência de amizade espiritual, te deixei e
me aproximei de ligações de morte. Se tanto te afligiu a ingratidão
do povo hebreu, quanto mais não sofreste por minha causa! Porque eu
te tratei de modo pior, após ter recebido de ti, meu bem verdadeiro,
tantas graças e benefícios. Meu dulcíssimo Senhor, agradeço-te de
todo o coração por haveres me arrancado da escravidão do mundo, do
pecado, das mãos do cruel faraó, demônio infernal que dominava a
minha pobre alma ao seu bel prazer! Me guiaste, meu Deus, com os pés
secos através das águas do mar das vaidades mundanas.
Por
tua graça passei à solidão do deserto, neste claustro. Aqui muitas
vezes me nutriste do teu dulcíssimo maná, rico de todo bom sabor.
Davam-me náuseas todos os prazeres do mundo, perto da menor de tuas
consolações espirituais. Agradeço a ti, meu Pai benigníssimo, que
muitas vezes com a tua dulcíssima boca sobre o Monte Sinai, da santa
oração, me deste a Lei, escrita com o dedo de teu Amor sobre as
tábuas do meu duríssimo e rebelde coração.
Agradeço
a ti, meu Redentor benigníssimo, por todas as vitórias que me deste
contra os meus inimigos, os vícios capitais. Somente de ti e por ti
alcancei hoje a minha vitória; da minha malvadeza e do pouco amor
que te dou, ó meu Deus, se deve cada uma de minhas derrotas. Tu, ó
Senhor, nasceste por graça em minha alma, deste a mim a tua luz, luz
da Verdade, Caminho para chegar a ti, verdadeiro Paraíso.
Nas
trevas e escuridão do mundo, me fizeste ver, ouvir, falar e caminhar
na tua luz. Porque verdadeiramente eu era cega, surda e muda a todas
as coisas espirituais. Me ressuscitaste em ti, verdadeira Vida, que
dá vida a cada criatura viva.
Mas,
ó Deus e Redentor
meu, quem te crucificou? Eu. Quem te flagelou à coluna? Eu. Quem te
coroou de espinhos? Eu. Quem te deu de beber fel e vinagre? Eu.”
Com
reflexões semelhantes sobre as dores sofridas por Jesus, aquela alma
bendita concluía dizendo: “Ó meu Jesus, sabes porque te digo
isto? Porque a luz da tua graça me fez compreender que muito mais te
fazem sofrer os meus pecados do que todas as dilacerações que
atormentaram então teu sacratíssimo corpo.
Meu
Deus, não fale-me mais das dores que te causou a ingratidão dos
homens, pois a tua luz me iluminou para conhecer, ao menos em parte,
a minha imensa ingratidão. Considero, por tua inspiração e graça,
o quanto te fizeram sofrer todas as criaturas juntas. Nesta
consideração o meu espírito se comove por tua imensa e paciente
Caridade. A tua bondade nunca se cansa de providenciar para nos, tuas
ingratíssimas criaturas, sustento em todas as nossas necessidades
espirituais e corporais.
Como
nunca poderemos conhecer plenamente as inumeráveis coisas que tu,
meu Deus, fizeste no céu, na terra, na água e no ar para nós,
vilíssimas criaturas, assim jamais poderemos compreender a nossa
indizível ingratidão. Creio que somente tu, meu Senhor, pode saber
o quanto pode ser dolorosa aquela amaríssima flecha que traspassou o
teu coração por causa da ingratidão de todas as criaturas que
existiram, existem e existirão. não passa mês, nem dia, nem hora
ou instante sem que tu recebas inumeráveis ofensas. Reconheço e
creio que a nossa indizível ingratidão foi uma das mais pungentes
espadas que traspassou a tua alma.”
Termino
estas poucas linhas sobre as dores mentais de Jesus. Sexta-feira, 12
de setembro do ano do Senhor de 1488[6].
Amém.
Muitas
outras coisas ouvidas daquela alma bendita poderei ainda dizer para a
utilidade e consolação dos leitores. Porém freio o impulso do meu
coração, pois aquela monja ainda está viva. Talvez futuramente
Deus me inspirará de juntar outras piedosas considerações, que
agora calo por delicadeza.
[1] Camila
Batista Varani, Autobiografia,
Editrice Ancora, Milano 1983.
[3] Jesus
fala como pessoa da Santíssima Trindade.
[4] A
inocência batismal.
[6] A
bem-aventurada tinha trinta anos.