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SERMÕES DE SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA


Na solidão encontrarás o Senhor

1. Naquele tempo disse Jesus a Pedro: “Segue-me” (Jo 21,19). Neste passo do Evangelho, podem-se observar duas coisas: a imitação de Cristo e seu amor para com seu fiel discípulo.
I – A Imitação de Cristo.
2. A imitação de Cristo está expressa nas palavras: “Segue-me”. Sim, isso ele o diz a Pedro, mas também a todo cristão: “segue-me, tu também, nu como nu o sou, livre de todo apego como livre o sou”. Por isso é que Jeremias afirma: “ Chamar-me-ás de Pai e não te cansarás de andar atrás de mim” (3,19). Segue-me, portanto, e joga fora o peso que levas, pois, carregado como estás, não podes andar atrás de mim que corro. “Corri, diz o salmista, tendo sede” (Sal 61,5); sede, entende-se, de salvar a humanidade. E para onde ele corre? Na direção da cruz. Por isso, corre também tu atrás de Cristo para que assim como ele tomou sua cruz por ti, tu também tomes a tua cruz por ti. Lê-se no evangelho de Lucas: “Se alguém quer vir após mim, renegue a si mesmo” (9,23), quer dizer, sacrifique a própria vontade, tome sua cruz mortificando a carne, todos os dias, isto é, continuamente, e assim siga-me. Portanto: segue-me! Ou então, se quiseres vir a mim e encontrar-me, segue-me, isto é, procura-me à parte. Ele diz aos discípulos: “Vinde à parte a um lugar deserto e descansai um pouco. Com efeito, tão grande era a multidão que ia e vinha que ele não tinha nem mesmo o tempo para comer” (Mc 6,31). Que coisa! Quantas paixões da carne, que multidão de pensamentos vão e vêm pelo nosso coração! E assim não temos nem o tempo de nos alimentar com o alimento da eterna doçura, nem de sentir o sabor da contemplação interior. Eis porque o bondoso Mestre diz ainda: “Vinde à parte, para longe da multidão, vinde a um lugar apartado, isto é, à solidão interior, da mente e do corpo, e descansai um pouco.
Sim, “um pouco”, porque como diz o Apocalipse: “Fez-se silêncio no céu por mais ou menos uma meia hora” (8,1) e o Salmo 54,7: “Quem me dará asas de pomba para voar e encontrar repouso?”. E o profeta Oséias também diz: “Eis que eu a amamentarei e conduzi-la-ei ao deserto e lhe falarei ao coração” (2,16). Nestas três expressões (amamentarei-conduzirei-falarei ao coração) podem-se notar também três situações: aquela de quem está no começo, aquela de quem está progredindo e aquela de quem já está na perfeição. É a graça que amamenta quem está no começo e o ilumina para que cresça e progrida de virtude em virtude; e por isso o conduz do barulho dos vícios, do tumulto dos pensamentos à solidão, isto é, à quietude interior da mente. Aí então, torna-o perfeito, fala-lhe ao coração e ele sente a doçura da inspiração divina e pode elevar-se de corpo e alma à alegria do espírito. E então, como é grande em seu coração a devoção! E como são grandes também a contemplação e o êxtase! Através da grandeza da devoção, a pessoa eleva-se acima de si mesma.
Através da sublime contemplação ela se sente como que transportada ainda acima de si mesma e, através do êxtase, ela é levada como para fora de si mesma. Por isso: “segue-me”. O Senhor fala como uma mãe carinhosa que quando está ensinando seu nenê a caminhar, mostra-lhe o pão ou uma maçã e lhe diz: “Vem, vem, eu vou te dar!” E quando a criança está pertinho, pronta para pegar, a mãe, devagarinho.. vai se afastando e dizendo-lhe, mostrando o pão e a maçã: “Vem, vem, pega!” Existem também pássaros que tiram do ninho seus filhotes e, voando, os ensina a voar e segui-los. Assim faz Cristo: ele mesmo se coloca como exemplo para que o sigamos e promete o prêmio no Reino dos Céus.
3. Segue-me, portanto, porque eu conheço o bom caminho pelo qual conduzir-te. No Livro dos Provérbios encontra-se escrito a este propósito: “Mostrar-te-ei o caminho da sabedoria. Conduzir-te-ei pelos caminhos da retidão. Quando neles entrares, teus passos não serão trôpegos e, se correres, não haverás de
tropeçar” (4,11-12). O caminho da sabedoria é o caminho da humildade. Bem diferente é o caminho da estultícia, porque é o caminho do orgulho. Jesus mesmo no-lo mostrou quando disse: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para vossas almas” (Mt 11,29). O caminho é estreito, dá apenas para dois pés, de tal modo que nenhum outro possa passar. Diz-se em latim 'semita’, isto é, “meia estrada”,'semis iter’, pois “semis” quer dizer metade e 'iter’ quer dizer caminho. Caminhos da retidão
são os da pobreza e da obediência. Por eles é que Cristo te conduz com seu exemplo, ele mesmo pobre e obediente. Nesses caminhos não existe estrada tortuosa; tudo é bem plaino, bem reto! Mas o que causa maravilha é o fato que, mesmo sendo assim tão estreitos, os passos dados neles não são indecisos, sem jeito. O caminho do mundo, ao contrário, é largo e espaçoso. E, no entanto, os seculares, aqueles que vivem segundo o mundo, acham que ele nunca é suficientemente largo: são como bêbados que acham sempre estreito qualquer caminho, mesmo o largo. Com efeito, a maldade tem uma estreiteza conatural. A pobreza e a obediência, ao contrário, contêm, é claro, uma restrição, mas por isso mesmo doam também liberdade, porque a pobreza torna rico e a obediência livre. Quem percorrer esses caminhos seguindo a Jesus, jamais encontrará o tropeço das riquezas ou o tropeço da própria vontade. Segue-me, portanto, e mostrar-te-ei “aquilo que olho não viu, ouvido não ouviu nem penetrou em coração de homem” (1Cor 2,9). “Segue-me e dar-te-ei, diz Isaías, tesouros escondidos e riquezas ocultas” (45,3). E o mesmo: “Ù vista disso ficarás radiante de alegria e teu coração estremecerá e se dilatará” (60,5). Haverás de ver a Deus face a face, assim como ele é e te encherás de delícias e riquezas na dupla estola da alma e do corpo. Teu coração admirará as ordens dos anjos e a moradia dos bem-aventurados e, por causa da imensa felicidade, se dilatará na exultação e no louvor. Portanto: segue-me! II – O Amor de Cristo para com o seu discípulo fiel.
4. O amor de Cristo para com a pessoa que lhe é fiel é bem demonstrado, por exemplo, na seguinte passagem: “Pedro, então, tendo-se voltado, viu que o estava seguindo o discípulo que Jesus amava, aquele que na ceia tinha se inclinado sobre o seu peito” (Jo 21,20). Quem realmente segue a Cristo, deseja que todos sigam o Senhor. Eis porque se dirige ao próximo com carinho, com oração devota e com a pregação. O voltar-se de Pedro significa exatamente isto e concorda com o final do Apocalipse – “O esposo e a esposa, isto é, Cristo e a Igreja, dizem: Vem! E quem escuta diga por sua vez: Vem! (22,17). Cristo, por meio da inspiração celeste, e a Igreja, por meio da pregação, dizem ao homem e à mulher: Vem! E quem ouve essas palavras, diga por sua vez ao próximo: Vem! Não queres seguir a Jesus? Portanto: tendo-se voltado, Pedro viu que o estava seguindo aquele discípulo que Jesus amava. E Jesus ama quem o segue. No livro dos Números diz-se o seguinte: “O meu servo Caleb, que me seguiu fielmente, eu o introduzirei na terra que ele percorreu. E a sua
geração dela tomará posse” (14,24). A Glossa, sem dizer o nome, mas com as palavras “que Jesus amava” está indicado o discípulo João e ele se distingue dos outros não porque Jesus amasse somente a ele, mas porque amava mais a ele do que aos outros. Amava também os outros, mas a este o amava com “maior afeição”. E Jesus gratificou-o com uma ternura maior de seu amor, pois o havia chamado quando era ainda virgem e virgem ele permaneceu; por isso a ele Jesus confiou sua própria mãe. Este foi um gesto imenso de amor! Somente João repousou a cabeça no peito de Jesus” no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col 2,3). Nesse mesmo gesto estava como que prefigurado o fato dos inumeráveis segredos divinos que ele haveria de escrever, a diferença dos demais evangelistas.
5. Pode-se observar também que Jacó descansou sobre uma pedra e João sobre o peito de Jesus. Aquele durante a caminhada, este durante a ceia. Em Jacó são representados os peregrinos sobre a terra, em João os bem-aventurados. Aqueles, durante a caminhada terrena, estes, já chegados à pátria celeste. No livro do Gênesis, se diz: “Jacó partiu de Bersabéia e dirigia-se a Haran. Querendo descansar, pegou uma pedra, colocou-a sob a cabeça e dormiu. E, em sonho, viu uma escada em pé e anjos subindo e descendo por ela e o Senhor no topo da escada.” (28,10-13). Jacó é o justo ainda peregrino sobre esta terra onde tem muito que lutar. Ele sai de Bersabéia que significa “sétimo poço” e representa o poço sem fundo da cobiça humana, exatamente como o sétimo dia do qual se lê não ter fim.
Dirige-se rumo a Haran que significa “alto” e representa por isso a Jerusalém celeste. O profeta Habacuc o diz: “Subirei e me unirei ao nosso povo já em paz”, o nosso povo que triunfou sobre a maldade do século. E, por desejar aliviar o cansaço de sua peregrinação, o justo coloca sob a cabeça uma pedra e adormece. A cabeça é a mente. A pedra é a firmeza da fé. A escada em pé representa o duplo amor a Deus e ao próximo. Os anjos são os homens justos que sobem até Deus elevando-se com suas mentes, mas abaixando-se até o próximo através da compaixão. A
pessoa justa, então, durante a peregrinação terrena, coloca a mente na firmeza da fé para descansar. Eis porque está escrito nos Provérbios: “O arganaz, uma espécie de marmota, por sua natureza, é fraco e faz seu esconderijo na pedra” (30,26). O arganaz, animal tímido, representa quem é fraco no espírito e por isso não sabe opor-se com força aos ataques de qualquer espécie e coloca na pedra da fé o travesseiro da sua esperança para aí poder descansar e dormir e ver elevar-se em si mesmo a escada do amor. Observe-se que o Senhor está no topo da escada por dois motivos: para sustentá-la e para acolher os que nela sobem. Na realidade ele sustenta o peso da nossa fragilidade de modo a estarmos em grau de subir a escada através das obras do amor. E ele acolhe aqueles que sobem para que possamos também nós tornar-nos eternos e bem aventurados com ele que é eterno e bem aventurado. E então, naquela ceia que nos saciará para sempre, descansaremos, com João, sobre o peito de Jesus. O coração no peito é o amor no coração.
Descansaremos em seu amor, porque haveremos de amá-lo com todo o coração e com toda a alma e encontraremos nele todos os tesouros da sabedoria e da ciência. O amor de Jesus! Que tesouro colocado no amor! Que sabedoria de inestimável sabor! Que ciência ele nos faz conhecer! “Serei saciado, diz o salmista, quando aparecer a tua glória” (16,15) e “Esta é a vida eterna: conhecer a Ti, o único verdadeiro Deus e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). A Ele sejam dados louvor e glória pelos séculos eternos. Amém.(Na Festa de São João Evangelista, III,pg.31-35)
Traduzido diretamente dos originais em latim por frei Geraldo Monteiro, conforme a edição crítica: “Sermões Dominicais e Festivos, III volume, Pádua, 1979, Ed. Messaggero Padova”.
Deixemos a vaidade do mundo!
“Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia…”(Mt 15,21). “Jesus, tendo saído…”etc. A saída de Jesus representa a saída de toda pessoa humana que se converte e sai da vaidade do mundo. Sobre isto, se lê e se canta na história deste domingo (2º da Quaresma): “Tendo Jacó saído de Bersabéia partiu para Harã (Gn 28,10). Eis como concordam os dois Testamentos: “Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia”, diz Mateus. “Jacó, tendo saído de Bersabéia, partiu para Harã”, diz Moisés no Gênesis. “Jacó é interpretado como ‘suplantador’ e representa o pecador convertido que, sob a planta (do pé) da razão pisa, esmaga a sensualidade da carne. Ele sai de Bersabéia, que se interpreta 'sétimo poço’, indicativo da insaciável cobiça deste mundo que é a raiz de todos os males. Deste poço fala João no seu evangelho, colocando as palavras da Samaritana na conversa com Jesus:
“Senhor! Nem sequer tens uma vasilha e o poço é profundo”. E Jesus responde: “Todos aqueles que beberem desta água, ainda terão sede” (Jo 4,11.13). Ó Samaritana! Disseste com toda razão e verdade que o poço é profundo. Com efeito, a cobiça do mundo é profunda, exatamente porque não tem o fundo da suficiência, da saciedade. Por isso, quem quer que seja que beber da água deste poço, entendida como riquezas e prazeres temporais, terá sede de novo. E é verdade mesmo, devemos repetí-lo, porque até Salomão o diz nas parábolas: “A sanguessuga tem duas filhas que dizem: Quero mais, quero mais” (Pv 30,15). A sanguessuga é o diabo que tem sede da nossa alma e deseja bebê-la. Suas são a duas filhas, isto é, as riquezas e os prazeres que sempre dizem: “Quero mais, quero mais” e nunca “Basta!” Diz também o Apocalipse: “Do poço subiu uma fumaça como a fumaça de uma grande fornalha, de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço. E da fumaça se espalharam gafanhotos pela terra” (9,2-3). A fumaça que cega os olhos da razão sobe do poço da cobiça mundana que é a grande fornalha da Babilônia. Por causa dessa fumaça é que se obscureceram o sol e o ar. O sol e o ar simbolizam os religiosos. “Sol”, porque os religiosos devem ser sempre puros, cheios de afeição e lúcidos: puros pela castidade, cheios de afeição pelo amor e lúcidos pela pobreza. “Ar”, porque eles devem ser “aéreos”, quer dizer, contemplativos. Infelizmente, por causa de nossos pecados, saiu a fumaça do poço da cobiça e já defumou a todos. É por isso que Jeremias deplora nas Lamentações: “Ai! Como se escureceu o ouro, como mudou sua mais esplêndida cor!” (Lm 4,1).
ol e ouro, ar e cor esplêndida significam a mesma coisa. O esplendor do sol e do ouro se obscureceu, o ar e a cor mudaram. E observe-se bem a exatidão com que Jeremias disse: “escureceu e mudou”. Com efeito, a fumaça da cobiça escurece o esplendor da vida religiosa e obscurece a esplêndida cor da contemplação celeste, na qual o vulto da alma torna-se misticamente invadido por uma esplêndida cor, isto é, torna-se cândido e vermelho: cândido pela encarnação do Senhor, vermelho pela sua paixão, cândido pelo branco marfim da castidade, vermelho pelo ardente desejo do esposo celeste. Lamentavelmente, esta esplêndida cor, hoje em dia, está bastante deteriorada porque foi defumada pela fumaça da cobiça, sobre a qual ainda está escrito: “E da fumaça do poço saíram gafanhotos pela terra”.
Os gafanhotos, pelos saltos que dão, representam todos os religiosos, os quais, com ambos os pés da pobreza e da obediência, devem saltar para a altura da vida eterna. Infelizmente, porém, com um salto para trás, da fumaça do poço, eles saíram pela terra e, como se diz no Êxodo, “cobriram a superfície da terra” (10,5). Hoje não se vêem mercados, não se fazem reuniões civis ou eclesiásticas nas quais não se encontrem monges e religiosos. Compram e
revendem, “constroem e destroem, tornam redondo o que era quadrado” (Horácio, Epist.), isto é, torcem e retorcem qualquer coisa. Nos processos convocam as partes, brigam diante dos juizes, pagam legistas e advogados, induzem testemunhas a jurarem junto com eles por coisas transitórias, frívolas e vãs. Dizei-me, ó religiosos insensatos, se nos profetas ou nos evangelhos de Cristo ou nas cartas de Paulo, se na regra de São Bento ou de Santo Agostinho vós encontrastes essas brigas, essas distrações, esses clamores e essas declarações nos processos por coisas efêmeras e caducas. Ou pelo contrário, não é o próprio Senhor que diz aos Apóstolos, aos monges, a todos os religiosos e não a modo de conselho, mas de ordem mesmo, já que escolheram o caminho da perfeição: “Eu vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam; abençoai aqueles que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos caluniam. E a quem te bate numa face, apresenta-lhe também a outra. E a quem te leva o manto, não recuses a túnica. Dá a quem te pede e não reclames de quem toma o que é teu. Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. E se amais apenas os que vos amam, que méritos tereis? Os pecadores também amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que méritos tereis? Até mesmo os pecadores agem assim” (Lc 6,27-33).
Esta é a regra de Jesus Cristo que deve ser preferida a todas as regras, instituições, tradições, invenções, porque “não há servo maior que seu patrão, nem apóstolo maior que aquele que o enviou” (Jo 13,16).Observai, escutai e vede, ó povos todos, se existe bobeira, se existe presunção igual à deles. Em suas regras e constituições está escrito que cada monge ou cônego tenha duas ou três túnicas e dois pares de calçados, de acordo com o inverno ou o verão. Se por acaso acontece de não terem essas coisas no tempo e no lugar que querem, dizem que não se está observando o que é mandado e isso vai mesquinhamente contra a regra.
Olhai com que escrúpulo querem observar a regra naquilo que é prescrito em vantagem do corpo, mas a regra de Jesus Cristo, sem a qual não podem salvar-se, observam pouco ou nada. E o que direi do clero e dos prelados da Igreja? Se um bispo ou um prelado da Igreja fizer algo contra um decreto do Papa Alexandre, Papa Inocêncio ou de qualquer outro papa, imediatamente é acusado, o acusado é convocado, o convocado é julgado por seu crime e, depois de julgado, é deposto. Ao contrário, se ele cometer algo de grave contra o Evangelho de Jesus Cristo, que ele tem por obrigação de vida observar, não há ninguém que o acuse, ninguém que o repreeenda. “Com efeito, todos amam o que é seu e não o que é de Jesus Cristo” (cfr. Fil 2,21). O próprio Cristo, com relação a essas coisas, tanto aos religiosos como ao clero, diz: “Invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando disse: 'Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois o que ensinam são mandamentos humanos’ (Mt 15,6-9). E de novo: “Ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus! Importava praticar estas coisas sem deixar de lado aquelas. Ai de vós, fariseus, que apreciais o primeiro lugar nas sinagogas e as saudações nas praças públicas…
Ai de vós, doutores da lei, que impondes aos homens fardos insuportáveis e vós mesmos não tocais esses fardos com um dedo sequer… Ai de vós, doutores da lei, porque tomastes as chaves da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar! (Lc 11,42-43.46.52). Portanto, bem se diz no Apocalipse que “saiu a fumaça do poço como a fumaça de uma grande fornalha que escureceu o sol e o ar e, da fumaça do poço, se espalharam sobre a terra os gafanhotos”. E observe-se ainda que o poço da cobiça humana é chamado “sétimo poço” e isso por dois motivos: ou porque
é o 'lixo’ e a fossa de sete crimes (pois a cobiça, como diz o Apóstolo, é a raiz de todos os males (Tm.6,10), ou porque a cobiça não tem o fundo da saciedade tal qual se lê no Gênesis que o “sétimo dia não teve tarde” (Gn 2,2). É deste infeliz poço, pois, que o pecador arrependido consegue sair. A ele se aplicam as palavras:
“Jacó, tendo saído de Bersabéia, partiu para Harã”. “Jesus, tendo saído dali, partiu para a região de Tiro e Sidônia”. Vejamos o que significam esses três nomes: Tiro, Sidônia e Harã. Tiro é interpretado como “angústia”, Sidônia “caça da tristeza”, Harã “excelsa ou indignação”. A pessoa arrependida, que sai da cobiça do mundo, vai para as regiões de Tiro, isto é, da angústia. Observe-se bem que a pessoa verdadeiramente arrependida tem duas angústias: a primeira é aquela que ela sente pelos pecados cometidos, a segunda é aquela que ela tem que agüentar por causa das três tentações, a do diabo, do mundo e a da carne. Sobre a primeira diz Jó: “As coisas que antes a minha alma não queria tocar, agora na minha angústia, tornaram-se o meu alimento” (6,7). Com efeito, para a pessoa arrependida, por causa da angústia do arrependimento que ela sente pelos pecados, quais alimentos saborosos são as vigílias intensas, as lágrimas abundantes, os freqüentes jejuns. Tudo isso a alma, isto é, a sua sensualidade saciada de coisas temporais, aborrecia até tocar, antes de voltar à penitência. É por isso que diz Salomão nas Parábolas: “A alma saciada pisa o favo de mel, mas a alma faminta toma até o amargo como se fosse doce” (Pr 27,7). Observe-se como calham bem Tiro e Harã, isto é, a angústia e o excelso, pois quem quiser chegar às coisas excelsas, sublimes, não poderá fazê-lo sem passar pela angústia. Assim também, a pessoa arrependida que quer subir à plenitude da vida eterna, deve antes passar por Tiro. É o próprio Senhor que o diz em Lucas: “Não era necessário que o Cristo
sofresse – eis aí Tiro – para entrar assim em sua glória – eis aí Harã – ? (24,26).
Frei Geraldo Monteiro,Tradução do latim “Sermões Dominicais e Festivos”, vol. I, pp.105-109 –Ed.Messaggero – Pádua – 1979.
Um novo modo de pensar e de viver
O tentador aproximou-se de Jesus e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4,3). O diabo em circunstâncias semelhantes procede de maneira semelhante. Com a mesma tática com que tentou Adão no paraíso terrestre, tentou também a Cristo no deserto e continua
tentando qualquer cristão neste mundo. Tentou o primeiro Adão pela gula, pela vanglória e pela avareza e, tentando-o, venceu-o. Ao segundo Adão, isto é, Cristo, ele tentou de maneira semelhante, mas no foi vencido no seu intento porque quem ele tentava então não era somente um homem, mas era também Deus! Nós, que somos participantes de ambos, do homem segundo a carne e de Deus segundo o espírito, despojemo-nos do homem velho com suas obras que são a gula, a vanglória e a avareza e vistamo-nos do homem novo, renovados pela confissão, para frearmos, com o jejum, o desenfreado ardor da gula, para abatermos, com a humildade da confissão, a altura da vanglória, para pisarmos, com a contrição do coração, o denso lodo da avareza. “Bem aventurados, diz o Senhor, os pobres em espírito”, isto é, os que têm o espírito dolorido e o coração contrito, “porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).
Procure ainda observar que, assim como o diabo tentou de gula o Senhor no deserto, de vanglória no templo, de avareza no cimo do monte, assim também faz conosco todos os dias: tenta-nos de gula no deserto do jejum, de vanglória no templo da oração e do ofício, de tantas formas de avareza no monte dos nossos cargos. Enquanto fazemos jejum, ele nos sugere a gula, com a qual pecamos em cinco maneiras, como diz o verso: “antes do tempo, abundantemente, demais, com voracidade e com delicadeza exagerada” (São Gregório). ANTES DO TEMPO, isto é, quando se come antes da hora; ABUNDANTEMENTE, quando se excita a gulosice da língua e se quer aumentar um apetite fraco com temperos, especiarias e toda espécie de comida; DEMAIS, quando se come mais comida do que o corpo necessita; pois dizem alguns gulosos: temos que fazer jejum, então vamos comer para suprir de uma só vez tanto o almoço quanto a janta. Estes são como o bicho-da-seda que não sai da árvore em que está até não devorá-la completamente. O “bruco” (bicho-da-seda) é chamado assim porque é feito quase só de boca e simboliza muito bem os gulosos que são tudo, gula e barriga, e assaltam o prato como se fosse uma fortaleza e não o deixam se antes não o devoraram todo: ou se estoura a barriga ou se esvazia o prato! COM VORACIDADE quando o homem se joga sobre qualquer comida como se fosse assaltar uma fortaleza, abre os braços, estica as mãos, come com todo seu corpo; à mesa é como um cão que, na comida, não quer ter rivais. COM DELICADEZA EXAGERADA quando se procura só comidas deliciosas e preparadas com grande esmero.
Como se lê no primeiro livro dos Reis, sobre os filhos de Heli, que não queriam aceitar a carne cozida, mas só a crua, para poderem prepará-la com mais temperos e outras iguarias. Semelhantemente, o diabo nos tenta de vanglória no templo. Com efeito, enquanto estamos em oração, enquanto recitamos o ofício e estamos ocupados na pregação, somos assaltados pelo diabo com os dardos da vanglória e, infelizmente, muitas vezes feridos. Existem efetivamente alguns que, enquanto oram e dobram os joelhos e soltam suspiros, querem ser vistos. E há outros que, quando cantam em coro, modulam a voz, fazem falsetes e desejam ser ouvidos. Enfim, há também os que, quando pregam, elevam a voz como trovão, multiplicam as citações, interpretam-nas a seu modo, giram-se pra cá e pra lá e desejam ser louvados. Todos esses mercenários – acreditem-me – “já receberam sua recompensa” (Mt 6,2) e colocaram sua filha no prostíbulo. Diz Moisés no Levítico: “Não profanes a tua filha, fazendo-a prostituir-se” (19,29). Filha minha é a minha obra e eu a prostituo, quer dizer, a coloco no prostíbulo quando a vendo pelo dinheiro da vanglória. Por isso é que o Senhor nos aconselha: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá no segredo” (Mt 6,6). Tu, quando quiseres rezar ou fazer alguma coisa de bom – e é nisto que consiste o “orar sem cessar” – entra em teu quarto, isto é, no segredo do teu coração, e fecha a porta dos cinco sentidos para não desejar nem ser visto nem ser escutado nem ser louvado. Com efeito, diz Lucas (1,9)
que Zacarias entrou no templo do Senhor na hora do incenso. No tempo da oração ‘que se eleva à presença do Senhor como o incenso’ (Salmo 140,2). Tu deves entrar no templo do teu coração e orar ao teu Pai e “o teu Pai, que vê no segredo, te recompensará” (Mt 6,6). Além disso, do alto dos nossos encargos, da nossa passageira dignidade, somos tentados a cometer muitos pecados de avareza.
Não existe só a avareza do dinheiro, mas também aquela do querer ser mais do que os outros. Os avarentos, mais têm mais desejam possuir. Aqueles que ocupam altos postos, quanto mais sobem mais querem subir e assim acontece que caem com numa queda muito mais ruidosa, já que “os ventos sopram mais nos lugares altos” (Ovídio) e “aos ídolos é que são oferecidos sacrifícios nas alturas” (4 Reis 12,3). Diz Salomão a propósito: “O fogo não diz nunca: basta!” (Prov 30,16). O fogo, quer dizer, a avareza do dinheiro e das honrarias não diz nunca: basta! Mas o que é que diz então? “Mais, mais!” þ Senhor Jesus, tirai, tirai estes dois “mais, mais” dos prelados de vossa Igreja, que se pavoneiam no alto de suas dignidades eclesiásticas e gastam o vosso patrimônio, por Vós conquistado com os tapas, com as flagelações, com as cusparadas, com a cruz, com os cravos, com o vinagre, com o fel e a lança. Nós, portanto, que somos chamados cristãos por causa do nome de Cristo, imploramos todos juntos, com a devoção da alma e ao mesmo Jesus Cristo, e pedimos insistentemente que ele, do espírito de contrição, nos faça chegar ao deserto da confissão, a fim de que, nesta Quaresma, mereçamos receber o perdão de todas as nossas maldades e, renovados e purificados, nos tornemos dignos de gozar da alegria da sua santa Ressurreição e ser colocados na glória da felicidade eterna. No-lo conceda Aquele a quem se deve toda honra e toda glória por todos os séculos dos séculos. Amém. Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv. Sermões Dominicais e Festivos 1º Domingo de Quaresma, pp. 81-84
Nós deixamos tudo…
Naquele tempo disse Simão Pedro a Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos” (Mt 19,27). Neste evangelho podem-se notar duas coisas: a grandeza dos apóstolos no juízo final e a recompensa daqueles que deixam as coisas passageiras deste mundo. A Grandeza dos Apóstolos no Juízo Final A
grandeza apostólica provém das palavras “Eis que nós deixamos tudo”. Pedro “corredor ágil, que faz a sua corrida” (Jeremias 2,23) diz: “Eis que nós deixamos tudo!” Pedro, fizeste bem, pois, carregado de peso, não poderias acompanhar Aquele que corre, Cristo! Um pouco antes, ele tinha ouvido o Senhor dizer: “Em verdade eu vos digo, dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus” (Mt 19,23). Por isso, para entrar com facilidade, tudo deixou. Mas, o que significa “tudo”? As coisas exteriores e e as interiores, isto é, aquilo que possuíamos e também a vontade de possuir, de tal modo que não nos restou absolutamente nada. Sobre isso diz o Senhor pela boca do Profeta Isaías: “Destruirei até o nome de Babilônia, seu resto, a sua descendência e a sua posteridade” (14,22).
O nome Babilônia significa “propriedade”, como se disséssemos: “meu, teu”. Cristo destruiu nos apóstolos não só este nome, mas até “o resto” da propriedade; e não só isso, mas também a descendência, quer dizer, a tentação de ter, e a posteridade, isto é, a vontade de possuir. Felizes os religiosos em que essas coisas foram destruídas, porque só assim poderão dizer verdadeiramente: Eis que nós deixamos tudo! Olhai os apóstolos “que voam”. Pelo que, diz Isaías: “Quem são estes que vêm deslizando como nuvens, como pombas de volta aos seus pombais?” As nuvens são leves. Os apóstolos, deixando o peso do mundo, voam ligeiros nas asas do amor seguindo a Jesus. Diz Jó: “Conheces por acaso os grandes caminhos das nuvens e a ciência perfeita?” (37,16). Grande caminho é deixar tudo. Caminho
estreito durante a peregrinação desta vida, mas largo e grande no momento da recompensa. Ciência perfeita é amar a Jesus e segui-Lo. Este foi o caminho e esta foi a ciência dos apóstolos que, como pombas, voaram a seus pombais. Pombais em latim se diz “Fenestrae” e é como dizer “que se leva para fora” (ferentes extra). Os apóstolos e os homens apostólicos, inocentes e simples como pombas, voaram bem para longe das coisas terrenas a tal ponto que guardaram as janelas dos sentidos para que não voltassem, saindo através delas, aquelas coisas exteriores que tinham abandonado. Por essas janelas saiu aquela pomba sem coração que se deixou seduzir. Conta o livro do Gênesis que “Dina (filha de Jacó) saiu para ver as moças daquela região. Mas
Siquém (príncipe) raptou-a e violou a sua virgindade” (cf.34,1-2). Assim também a alma desventurada é levada para fora através dos sentidos do corpo para ver as belezas mundanas e, enquanto vagueia pra cá e pra lá, é raptada com seu consentimento pelo diabo e o resultado é a sua ruína. Que diferença entre os dois vôos! Os apóstolos, das coisas terrenas voam rumo às celestes, a pessoa pecadora, das coisas celestes desce para as terrenas. Ela voa pra o diabo, eles para Cristo! “Eis que te seguimos” (Mt 19,27). Por Ti, Jesus, deixamos tudo, nos tornamos pobres. E pois que és rico, nós Te seguimos para que nos faça ricos também.
São os mais miseráveis entre todos os homens aqueles religiosos que deixam tudo e no entanto não seguem a Cristo. Esses têm um duplo prejuízo: são privados de qualquer consolação externa e não possuem nem a interior. Os mundanos, mesmo não tendo as consolações interiores, pelo menos têm aquelas exteriores. “Nós te seguimos”. Nós, criaturas, seguimos o Criador; nós, filhos, seguimos o pai; nós, crianças, seguimos a mãe; nós, famintos, seguimos o pão; nós, com sede, seguimos a fonte; nós, doentes, seguimos o médico; nós, cansados, seguimos o leito; nós, exilados, seguimos o paraíso! “Nós Te seguimos”: nós corremos atrás da fragrância dos teus perfumes (Ct 1,3), porque a fragrância de teus perfumes supera a de todos os demais aromas (Ct 4,10). Lê-se na História Natural que a pantera é uma fera de beleza maravilhosa, cujo cheiro é de tanta suavidade que supera qualquer outro perfume. Por isso, quando os outros animais pressentem sua presença, imediatamente se avizinham e seguem-na, porque se sentem reforçados de modo admirável pela sua visão e pelo seu perfume (Aristóteles e Plínio). Quão grande seja a beleza e a suavidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, os bem aventurados o experimentam na pátria celeste, mas também as pessoas justas,
de algum modo, o experimentam nesta vida. E os apóstolos, logo que experimentaram a suavidade de Jesus, tendo deixado tudo, imediatamente O seguiram. “Eis que nós te seguimos: que recompensa teremos?” (Mt 19,27) “Como aqueles que procuram um tesouro: alegram-se sobremaneira quando encontram um sepulcro”(Jó 3,21-22). O tesouro no sepulcro é o símbolo de Deus no corpo, assumido da Virgem Maria. Apóstolos, já encontrastes o tesouro, já o tendes totalmente. O que procurais a mais? “Que recompensa teremos”? O que quereis ter ainda mais? Conservai aquilo que encontrastes, porque Ele é tudo o que procurais. Nele, diz Baruc, existe a sabedoria, a prudência, a fortaleza, a inteligência, a longevidade e o alimento, a luz dos olhos e a paz” (3,12-14). Existe a sabedoria que tudo cria; a prudência com que governa todas as coisas criadas; a fortaleza com que freia o diabo; a inteligência com que tudo penetra; a longevidade com que perpetua os seus; o alimento com que sacia; a luz com que ilumina; a paz com que conforta e doa serenidade. “E Jesus lhes disse: em verdade eu vos digo, vós que me seguistes” (Mt 19,28). O Senhor não responde: “Vós que deixastes tudo”, mas “vós que me seguistes” – isso é próprio dos apóstolos e dos perfeitos. Muitos deixam suas coisas e no entanto não seguem a Cristo porque, por assim dizer, se agarram a si mesmos. Se quiseres seguir e alcançar, é preciso que deixes a ti mesmo.
Quem segue alguém pelo caminho, não olha para si, mas para o outro, que constituiu como guia para seu caminho. Deixar-se a si mesmo significa não confiar em si em nenhum caso, considerar-se inútil mesmo quando se fez tudo o que tinha sido mandado, desprezar-se a si mesmo como um cão morto ou uma pulga (1Sm 24,15), no próprio coração não antepor-se a ninguém, julgar-se inferior a todos, até aos maiores pecadores, considerar todas as próprias obras boas como panos sujos de uma mulher menstruada, colocar-se diante de si mesmo e chorar como diante de um morto, humilhar-se profundamente em qualquer ocasião e lançar-se totalmente nos braços de Deus. Ouçamos o que é prometido àqueles que assim O seguem. “Na nova criação: (in regeneratione) a primeira regeneração acontece na alma através do batismo, a segunda acontecerá no corpo no dia do juízo, quando os mortos ressurgirão incorruptos” (1Cor 15,52), quando “o Filho do homem”, isto é Jesus, na condição de servo, submetido a juízo aqui na terra, “sentar-se-á”, isto é, exercitará o seu poder de juiz “sobre o trono da sua glória”, isto é, a Igreja, onde se manifestará o seu poder, “sentareis também vós sobre os doze tronos” (Mt19,28).
Se somente os doze apóstolos, sentados sobre doze tronos, serão juízes com Cristo no dia do juízo, onde se sentará Paulo, “vaso de eleição” (At 9,15), que hoje de lobo se transformou em cordeiro, que trabalhou mais do que todos (1Cor 15,10), que “foi arrebatado até o terceiro céu e ouviu segredos que não é lícito ao homem revelar” (2Cor 12,2)? Onde se sentará, repito, um homem tão grande assim, se no tribunal existem para os juízes somente doze tronos, do momento que ele afirma: “Não sabeis que julgaremos os anjos” (1Cor 6,3), isto é, os anjos maus? Por isso é preciso saber que o número doze é usado para indicar a plenitude do poder e que com as doze tribos de Israel entendem-se todos aqueles que deverão ser julgados. Eis, portanto, que os pobres, junto com Jesus pobre, filho da Virgem pobrezinha, julgarão com justiça o mundo inteiro (Sl 9,9). Jó também diz: “Deus não salva os ímpios, mas deixará aos pobres o juízo” (36,6). Diz “aos pobres” e não aos ricos” cuja glória será a sua confusão” (Fl 3,19). Com efeito, os ricos ficarão confusos quando virem sentados em juízo com Cristo e com Cristo julgar, “aqueles que um dia desprezaram e ultrajaram” (Sab 5,3). Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv – Conversão de S. Paulo, Vol.III, pp. 83-87 Sermões Dominicais e Festivos Ed.Mess. Padova – 1979
Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria
IV. Reflexão.

10. “O anjo Gabriel foi enviado” etc. Acabamos de ouvir de que maneira a Virgem Maria concebeu o Filho de Deus Pai. Vamos ver agora, brevemente, de que jeito a alma concebe o espírito da salvação. Na Virgem Maria vemos representada a alma fiel: “virgem” pela integridade da fé. Com efeito, diz o Apóstolo: “Eu vos prometi a um único esposo, para apresentar-vos como virgem casta a Cristo” (2Cor 11,2). “Maria”, isto é, estrela do mar, pela profissão da própria fé. “Crê-se com o coração para obter a justiça”, eis a virgem. “Com a boca faz-se a profissão de fé para obter a salvação” (Rm 10,10): eis a estrela que da amargura do mundo guia ao porto da salvação eterna. Essa virgem mora em Nazaré da Galiléia, quer dizer, “na flor da emigração”.
A flor é a esperança do fruto. Com efeito, a alma fiel espera “emigrar”, passar da fé à visão, da sombra à verdade, da promessa à realidade, da flor ao fruto, do visível ao invisível. Dizem os pastores: “Vamos até Belém, porque ali encontraremos bons pastos, o pão dos anjos, o Verbo Encarnado. Lemos em Isaías: “Alegria dos burros selvagens, pastagem dos rebanhos” (32,14). Nos burros selvagens estão simbolizados os justos, cuja alegria será a pastagem dos rebanhos, quer dizer, o esplendor e a felicidade dos anjos, porque junto com os anjos pastarão, isto é, gozarão da visão do Verbo Encarnado. A essa virgem é enviado o anjo Gabriel, cujo nome significa “Deus me confortou”. Nele é indicada a infusão da graça divina e sem o seu conforto a alma desfalece.
Por isso diz Judite: “Dai-me forças, ó Senhor, Deus de Israel, nesta hora”. E, com o punhal, golpeou duas vezes o pescoço de Holofernes e cortou-lhe a cabeça” (13,9-10). Holofernes significa “enfraquece o boizinho engordado”. Nele é representado o pecador que, engordado com a gordura das coisas temporais, é despojado pelo diabo das virtudes e assim se enfraquece e fica doente. A cabeça de Holofernes é a soberba do diabo. Diz Gênesis: “Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (3,15). No calcanhar é indicado o fim da vida. A Virgem Maria esmigalhou a soberba do diabo por meio da humildade, mas ele a tentou, no calcanhar, durante a paixão de seu Filho. Quem quiser arrancar de si mesmo a soberba do diabo, deve golpeá-lo duas vezes. Esse duplo golpe é a lembrança do nosso nascimento e o pensamento da nossa morte. Quem medita assiduamente sobre esses dois momentos da sua vida arranca de si a soberba do diabo, mas antes é preciso que implore o sustento da graça divina. “Agi virilmente e o vosso coração será confortado” (Sl
30,25). 11. “Entrando o anjo onde ela estava”. Aqui é colocada em evidência a solidão da alma que mora em si mesma, lendo no livro da própria miséria e indo à busca da doçura divina: por isso ela merece ouvir dizer:
“Ave!” O nome de Eva que quer dizer “ai” ou desgraça. Lido ao contrário fica Ave. A alma que se encontra no pecado mortal é Eva, ou seja, “ai” e desgraça, mas se ela se converte à penitência e ouve dizer-lhe Ave, quer dizer “sem ai”. “Cheia de graça”. Quem derrama ainda alguma coisa numa vasilha cheia perde tudo aquilo que nela coloca. Assim também na alma, se ela for cheia de graça, não pode entrar nela a sujeira do pecado. A graça penetra todos os espaços e não deixa nenhum pedacinho vazio em que possa entrar e ficar aquilo que lhe é contrário. Quem tudo compra, tudo quer possuir. E a alma é tão grande que ninguém pode preenchê-la a não ser somente Deus que, como diz São João, “é infinitamente maior que o nosso coração e conhece todas as coisas” (1Jo 3,20).
Uma vasilha bem cheia derrama em todas as partes. Da plenitude da alma recebem todos os sentidos porque, como diz o profeta Isaías, “será de sábado a sábado” (66), quer dizer, da paz interior virá a paz dos sentidos e dos membros. “O Senhor é contigo”. Ao contrário, lemos no Êxodo: “Não irei contigo, porque tu és um povo de cabeça dura” (33,3), isto é, desobediente e soberbo. É como se dissesse: “Eu iria contigo se fosses humilde!” Por isso ao humilde ele promete: “Tu és o meu servo: mesmo que tiveres que atravessar as águas eu estarei contigo e os rios não te submergirão. Se tiveres que atravessar o fogo, não te queimarás, a chama não poderá te queimar” (Is 43,2). Nas águas é simbolizada a sugestão do diabo, nos rios a gula e a luxúria; no fogo, o dinheiro e a abundância das coisas materiais; na chama, a vanglória. O servo, isto é, a pessoa humilde com quem está o Senhor, passa ileso através das sugestões do diabo, porque nem a gula nem a luxúria o cobrem. Quem está com a cabeça totalmente coberta não pode ver, cheirar, falar e ouvir distintamente. Assim, também quem estiver totalmente coberto pela gula e pela luxúria fica privado da faculdade de contemplar, discernir, reconhecer o seu pecado e obedecer. O humilde, mesmo que caminhe através do fogo das coisas temporais, não se queima com a avareza ou com a vanglória. 12. “Tu és bendita entre as mulheres”.
Lê-se na História Natural que as mulheres sentem compaixão bem mais intensamente do que os homens, derramam lágrimas bem mais do que os homens e possuem uma memória muito mais duradoura do que os homens (Aristóteles). Nessas três qualidades são indicadas a piedade com o próximo, a devoção das lágrimas, a lembrança da paixão do Senhor. Lemos no Cântico dos Cânticos: “Coloca-me como um selo em teu coração, uma tatuagem em teu braço, porque forte como a morte é o amor!” (8,6): o teu amor pelo qual morreste! Bem-aventuradas aquelas almas que possuem essas três qualidades. Entre elas é bendita, com o privilégio de uma bênção especial, a alma fiel e humilde, rica de obras de caridade. E em mérito a essa bênção, continua: “Eis que conceberás e darás à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus”. Lemos ainda na História Natural que as mulheres grávidas sentem dores, perdem o apetite, a vista fica anuviada. Outras mulheres grávidas não gostam de vinho, porque bebendo-o perdem as forças. Isso acontece também com a alma. Quando, sob a ação do Espírito Santo, concebe o espírito da salvação: começa a arrepender-se de seus pecados, sente repugnância pelas coisas temporais, desagrada-se a si mesma, (este é o significado do anuviamento da vista); acostumada a admirar-se com gosto, não gosta do vinho da luxúria. Por estes sinais poderás julgar se a alma concebeu o espírito da salvação que em seguida dará à luz quando der fruto na luz das obras boas. E a esse fruto dará o nome de “salvação” (Jesus), porque tudo o que faz é em vista da salvação. É a intenção – foi dito – que qualifica a obra. A alma fiel age para agradar a Deus, para obter o perdão dos pecados, edificar o próximo e alcançar a salvação. Digne-se conceder a salvação também a nós Aquele que é bendito pelos séculos dos séculos. Amém. Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv Sermões de Santo Antônio Ed. Messaggero – Padova,1979 – Volume III, pp158-161
Paixão de Jesus e a Formação da nossa Vida
1. Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24). Nós lemos no livro de Tobias que o anjo Rafael lhe disse: “Abre o peixe, pega o coração, o fel e o fígado e coloca-os de lado para ti; são remédios necessários e úteis” (6,5). Vamos ver que significado têm o peixe, seu coração, o fel e fígado. O peixe é a figura de Cristo que diz a Pedro: “Vai mais para o fundo do mar, joga o anzol e o primeiro peixe que vier, pega-o, abre-lhe a boca e encontrarás uma moeda de prata (estatere): pega-a e entrega-lhes por mim e por ti” (Mt 17,26). O peixe, portanto, é figura de Cristo que morou neste mar grande e espaçoso; primeiro, ele foi mais para o fundo, isto é, ele se ofereceu à morte pela nossa redenção, para que aquilo que se encontrou em sua boca, quer dizer, em seu testemunho, fosse dado por Pedro e pelo Senhor. Foi pago exatamente um único preço, mas dividido, porque foi dado por Pedro como pecador, enquanto, que o Senhor não tinha cometido pecado algum. A moeda é o estatere, que vale quatro dracmas, para que fosse manifestada a semelhança na carne, enquanto o Patrão (o Senhor) e o servo são libertados com o mesmo preço. Ou então, o estatere na boca de Cristo é figura da sua misericórdia e da sua justiça. Misericórdia, quando disse: “Vinde a mim vós todos que estais cansados e oprimidos” (Mt 11,28) . Justiça quando dirá: “Ide, malditos, para o fogo eterno” (Mt 25,31). Abre, portanto, o peixe, isto é, medita profundamente sobre a vida de Cristo e ali encontrarás o seu coração, o fel e o fígado. Com o coração nós compreendemos, com o fel nós nos enraivecemos e com o fígado nós amamos. No coração é simbolizada a sabedoria, no fel a amargura e no fígado o amor de Jesus Cristo. Com o sabor da sabedoria que se estende de um confim a outro e governa com bondade excelente todas as coisas (Sab 8,1), tempera a tua insipiência; mistura a amargura da sua paixão aos teus prazeres; coloca o seu amor acima de qualquer outro amor, pois sem o seu amor deve-se dizer dor e não amor. Estes são os remédios úteis à tua alma e se tu os guardares para ti, serás servo não do diabo mas de Deus, não da carne mas do espírito, não do mundo, mas do céu! A sabedoria de Cristo quebra o poder do diabo. Diz Jó: “A sua sabedoria abateu o soberbo” (26,2). O antigo adversário foi derrotado não pela força mas pela sabedoria, porque quando se arrojou temerariamente contra Cristo, em quem não havia nada que lhe dissesse respeito, com razão lhe escapou das mãos o homem sobre o qual quase tinha o direito de dominar. A amargura da paixão de Cristo consegue sufocar até os apetites da carne. Disse alguém: “A lembrança do Crucificado crucifica os vícios!” E sobre isso, olha o sermão do Domingo de Quinquagésima, no Evangelho: “Um cego estava sentado à beira do caminho”. Semelhantemente o contra-veneno do seu amor elimina o veneno das riquezas. Com efeito, está escrito no livro de Tobias que: “a sua fumaça”, isto é, a eficácia do seu amor, “expulsa qualquer espécie de demônio”(6,8), isto é, toda ganância de riquezas que, como demônios, despedaçam e fazem sofrer os homens. Todos os ricos deste mundo são como que endemoniados, se movem de um lado para outro, feitos servos não do verdadeiro mas do falso patrão. É propriamente deles que o Evangelho diz: “Ninguém pode servir a dois senhores”. 2. Considera que queremos dividir o Evangelho de hoje em três partes. A primeira: “Ninguém pode servir a dois senhores”. A segunda: “Eu vos digo: não vos preocupeis!” A terceira: “Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus! A primeira trata dos dois senhores, a segunda nos ensina a eliminar qualquer preocupação, a terceira nos manda procurar antes de tudo o Reino de Deus. Observa também que neste Domingo se lê na igreja o livro de Tobias do qual tomaremos alguns passos para ver sua concordância com as três partes do Evangelho. No intróito da missa canta-se o salmo: “Piedade de mim, Senhor, a Vós eu grito o dia inteiro”(85,3). Lê-se depois na Carta de São Paulo apóstolo aos Gálatas: “Se vivemos do Espírito, caminhemos também segundo o Espírito”(5,25). Vamos dividí-la em três partes para ver a sua concordância
com as três partes do Evangelho. A primeira parte: “Se vivemos no Espírito”. A segunda parte: “Levai o peso uns dos outros”. A terceira parte: “Quem semeia no Espírito”. Presta muita atenção porque esta Carta é lida junto com o Evangelho pelo fato que o Senhor, no Evangelho, proíbe as preocupações da alma, isto é, da animalidade; ensina a procurar o Reino de Deus. E Paulo, na carta, ensina a viver segundo o Espírito, ensina a semear não na carne mas no espírito, porque quem semeia no espírito há de recolher a vida eterna. I. Os dois senhores.
3. “Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou preferirá um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e à Riqueza!” (Mt 6,2). Pensa que a alma tem duas potências: a razão e a sensualidade que são como que dois senhores. Do domínio da razão, Isaac diz no livro do Gênesis: “Eu o constituí teu senhor e coloquei sob seu serviço todos os seus irmãos” (27,37). E isto acontece quando a própria vontade e os sentidos do corpo são colocados sob o domínio da razão. Com efeito, no mesmo livro, Jacó diz de Judá: “Ele amarra à videira o seu burrinho, e à parreira, meu filho, a sua burra”. (Gn 49,11). Judá é a figura do penitente, a videira é a razão, a parreira o arrependimento, a burra a sensualidade, o burrinho os seus impulsos. Por isso Judá amarra a burra à videira e o burrinho à parreira, quando o penitente domina a sensualidade do coração com o arrependimento e coloca sob o jugo da razão os estímulos da sensualidade.
Em Gênesis trata-se ainda disso na parte em que José diz aos seus irmãos: “Parecia-me que estivéssemos amarrando os feixes de trigo no meio do campo, quando eis que o meu feixe se levantou e ficou em pé e os vossos feixes se colocaram a seu redor e se prostraram diante do meu. Disseram-lhe os seus irmãos: “Por acaso te tornarás nosso rei? Ou nos submeteremos à tua autoridade?” (Gn 37,7-8). O feixe, em latim ‘manípulus’, manípulo, porque se pega com as mãos, é um feixe de ramos de trigo. José é a figura do justo, cujo ‘manípulo’ é a razão que, quando se ergue em pé por meio do desprezo das coisas temporais e permanece imóvel nas alturas da contemplação, os outros feixes, isto é, os sentidos do corpo, se submetem a seu comando. Por isso Isaac diz: “Sê senhor de teus irmãos e prostrem-se diante de ti os filhos de tua mãe”
(Gn 27,29). E Isaías: “Virão a ti, de cabeça baixa, os filhos de teus opressores “, isto é, de desejos da carne “e adorarão as pegadas dos teus pés aqueles que te insultaram” (60,14). E sobre o domínio da sensualidade diz Moisés: “Pois que não serviste o Senhor teu Deus com a alegria e a felicidade do coração no meio da abundância de todas as coisas, servirás a teu inimigo que te colocará sobre o pescoço um jugo de ferro,até que te tiver destruído” (Dt 28,47.48). Pois que Adão não quis submeter-se Àquele que lhe estava acima, não se submeteu a ele aquele que lhe estava abaixo. Aliás, o próprio Adão foi obrigado a servir ao seu inimigo, isto é, ao diabo, ou à sua carne, de quem nenhum inimigo é mais aguerrido em prejudicar; seu jugo férreo, isto é, a sensualidade ou a carnalidade, foi colocado sobre o pescoço da razão. Diz o Eclesiástico: “Como jugo pesado pesa sobre os filhos de Adão desde o dia de seu nascimento!” (40,1). O jugo pesado sobre os filhos de Adão desde o dia de seu nascimento é o pecado original, ou seja, a fome do pecado ou a concupiscência à qual, diz Agostinho, não se deve permitir mandar. E existem os seus desejos, isto é, as concupiscências de cada dia que são as armas nas mãos do diabo que provêm da fraqueza da natureza. Esta fraqueza é o tirano que dá origem aos maus desejos. Queres ouvir como é pesado o jugo dos filhos de Adão?
Escuta o que está escrito nos “Dogmas da Igreja”. Tem como certo, sem nenhuma sombra de dúvida, que todos os homens, concebidos da união do homem e da mulher, nascem com o pecado original, sujeitos à impiedade, destinados à morte, portanto, por natureza “filhos da ira” (Ef 2,3), “da qual ninguém pode se livrar senão por meio da fé no Mediador entre Deus e os homens” Cristo Senhor! Tradução: frei Geraldo Monteiro (Sermões Dominicais e Festivos, volume II, Pádua, 1979, Edições Mensageiro, pp. 221-225)

As três saudações de Paz
“Veio Jesus e, pondo-se no meio deles, lhes disse: A paz esteja convosco”. Tendo dito isso, mostroulhes as mãos e o lado. O discípulos se alegraram ao ver o Senhor. E Jesus lhes disse de novo: ‘A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio’ ” (Jo 20,19-20). É preciso notar, antes de tudo, que neste trecho do Evangelho é dito por três vezes “A paz esteja convosco” por causa das três pazes que Cristo restabeleceu: – entre Deus e o homem, reconciliando este último com o Pai por meio de seu sangue; – entre o anjo e o homem, assumindo a natureza humana e elevando-a acima dos coros dos anjos; – entre homem e homem, reunindo em si como pedra angular, o povo dos Judeus e o dos Gentios (pagãos). Observe-se também que na palavra PAZ (PAX em latim) há três letras que formam uma só sílaba. Com isso é simbolizada a Unidade e a Trindade de Deus. No “P” é indicado o Pai, no “A”, que é a primeira das vogais, é indicado o Filho que é a voz (o vogal) do Pai. No “X” que é consoante dupla, é indicado o Espírito Santo que procede de ambos (do Pai e do Filho). Quando, portanto, Jesus disse: “A paz esteja convosco”, ele nos recomendou a fé na Unidade e na Trindade. “Veio Jesus e se pôs no meio deles”. O centro é o lugar que compete a Jesus; no céu, no seio da Virgem, na manjedoura da grei e no patíbulo da cruz. No céu: “O Cordeiro que está no meio do trono”, isto é, no seio do Pai, “os guiará e os conduzirá às fontes de água da vida” (Ap 7,17), isto é, à saciedade dos gozos celestes. No seio da Virgem: “Exultai e cantai louvores, habitantes de Sião, porque grande é no meio de vós o Santo de Israel” (Is 12,6). Ó bem-aventurada Maria que és a figura dos habitantes de Sião, isto é, da Igreja, que na encarnação do vosso Filho fundaste o edifício da sua fé, exulta com todo o coração, canta com a boca o teu louvor: “Minha alma glorifica o Senhor!”, porque o grande, o pequeno e o humilde, o santo e o santificador de Israel está no meio de ti, isto é, em teu seio! Na manjedoura da grei: “Serás conhecido entre dois animais” (Hab 3,2 – Glossa). “O boi conhece o seu proprietário e o burro a manjedoura do seu dono” (Is 1,3). No patíbulo da cruz:“Crucificaram junto com Jesus outros dois, de um lado e de outro e Jesus no meio” (Jo 19,18). Veio, pois, Jesus e se colocou no meio deles. “Eu estou no meio de vós – nos diz São Lucas – como aquele que serve (22,27). Ele está no centro de todo coração. Está no centro porque dele, como do centro, todos os raios da graça se irradiam a nós que caminhamos ao seu redor e nos agitamos na periferia. Com tudo isso estão de
acordo as palavras dos Atos dos Apóstolos: “Naqueles dias, Pedro, tendo-se levantado no meio dos irmãos, (estava reunido um grupo de quase cento e vinte homens) disse: “Irmãos…”, etc. e tudo aquilo que aconteceu para a eleição de Matias (cf. Atos 1,1-1). Cristo, ressuscitado dos mortos, colocou-se no meio dos discípulos.
Pedro que, antes de todos, tinha caído renegando-O, levantou-se no meio dos irmãos, indicando com isso a nós que, levantando-nos do pecado, nos colocamos no meio dos irmãos, porque no centro existe o amor que se estende seja ao amigo que ao inimigo. “Veio, pois, Jesus e se colocou no meio dos discípulos e disse: ‘A paz esteja convosco”.
É preciso lembrar que existem três tipos de paz. Em primeiro lugar, a paz do tempo sobre a qual está escrito no livro dos Reis que “Salomão esteve em paz com todos ao seu redor” (com os países limítrofes) (5,4). Segundo, a paz do coração, sobre a qual se diz: “Na paz eu me deito e logo adormeço” (salmo 4,9); e ainda: “A Igreja estava em paz em toda a Judéia, Galiléia e Samaria; crescia e caminhava no temor do Senhor, cheia do conforto do Espírito Santo” (Atos 9,31). Judéia quer dizer “confissão”, Galiléia “passagem” e Samaria “guarda”. Portanto, a Igreja, isto é, a alma fiel, encontra a paz nestas três coisas: na confissão, na passagem dos vícios às virtudes, na guarda do preceito divino e da graça recebida. Desse modo ela cresce e caminha de virtude em virtude no temor do Senhor; não um temor servil mas um afetuoso temor filial; e em toda tribulação sente-se cheia da consolação do Espírito Santo. Terceiro: a paz da eternidade, sobre a qual
diz o salmo: “Ele construiu a paz em teus confins” (147,14). A primeira paz, tu deves ter com o próximo, a segunda contigo mesmo e assim, na oitava da ressurreição, terás também a terceira paz, com Deus no céu! Coloca-te, pois, no meio e terás a paz com o próximo. Se não estiveres no meio, não poderás ter a paz. Com efeito, na “circunferência” não há paz nem tranqüilidade, antes, movimento e volubilidade. Conta-se sobre os elefantes que, quando eles têm que enfrentar um combate, possuem um cuidado todo especial para com os feridos: fecham-nos ao centro do grupo junto com os mais fracos. Assim também tu: acolhe no centro do amor o próximo fraco e ferido. Como fez aquele guarda da cadeia de que se fala nos Atos dos Apóstolos que, tomando à parte Paulo e Silas naquela mesma hora da noite, lavou-lhes os ferimentos, conduziu-os à sua casa, preparou-lhes de comer e ficou imensamente contente junto com toda a sua família por ter acreditado em Deus (cf. Atos 16,33-34). “Jesus colocou-se no meio dos discípulos e lhes disse: ‘A paz esteja convosco!’ Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado”. Lucas escreve que Jesus disse: “Olhai as minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo!” (24,39).
Conforme meu parecer, o Senhor mostrou aos apóstolos as mãos, o lado e os pés por quatro razões.Primeira, para mostrar que tinha realmente ressuscitado e tirar-nos assim qualquer dúvida. Segunda, porque a pomba, isto é, a Igreja ou mesmo a alma fiel pudesse fazer seu ninho nas suas chagas como que em profundas fendas e assim pudesse proteger-se da vista do gavião que trama ciladas para pegá-la. Terceira, para imprimir em nossos corações os sinais extraordinários da sua paixão. Quarta, mostrou-lhes para que também nós, participando de sua paixão, não O preguemos nunca mais na cruz com os cravos dos nossos pecados. Mostrou-nos, portanto, as mãos e o lado dizendo: “Eis as mãos que vos plasmaram, como foram transpassadas pelos cravos! Eis o peito do qual vós, fiéis, Igreja minha, fostes gerados, como Eva foi procriada do costado de Adão, eis como foi aberto pela lança para abrir-vos as portas do paraíso, guardada pela espada flamejante do anjo querubim. O vigor do sangue que jorra do coração de Cristo, afastou o anjo e tornou inócua a espada e a água apagou o fogo. Portanto, não queirais crucificar-me de novo e profanar o sangue da aliança em que fostes santificados e ultrajar o Espírito da graça. Se prestares bem atenção a estas coisas e as escutares, terás paz contigo mesmo, ó homem! Por isso, o Senhor, após ter-lhes mostrado as mãos e o lado, disse de novo: “A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou” à paixão, embora me ame, assim também eu, com o mesmo amor, vos envio ao encontro daqueles sofrimentos aos quais o Pai me enviou. (Sermões de Domingos e Festas, volume I, Pádua, 1979, Edição Mensageiro de Santo Antônio, pp. 235ss)Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

As várias ofertas da Virgem Maria
Lemos no Livro dos Juízes: “Água ele pediu, leite ela lhe deu e em uma taça de príncipes ofereceu creme” (5,25). Sísara (chefe do exército de Canaã) significa “exclusão da alegria” e é figura do diabo que, excluído da alegria da vida eterna, procura de todos os modos excluir também os cristãos fiéis. A ele, que pedia a água da concupiscência, a nossa Jael (Maria) ofereceu o leite. Foi por divino conselho que o mistério da encarnação do Senhor permaneceu escondido ao diabo. Vendo que a beata Virgem era casada, estava grávida e deu à luz a um filho e o amamentava, o diabo pensou que também ela fosse sujeita à concupiscência e ao pecado e, por isso, aproximou-se dela para exigir-lhe, como preço, a água da concupiscência. A Virgem, porém, amamentando seu Filho, levou ao engano o diabo e assim matou-o com a estaca da tenda e com o martelo. Na estaca, que serve para fixar e fechar a tenda, é representada a virgindade de Maria. No martelo, que tem a figura de um tau (T), é representada a cruz de Cristo. Jael, portanto, ou seja, a Virgem Maria, matou o inimigo, o diabo, com a virgindade do seu corpo e com a paixão do seu Filho pregado na cruz. Por isso, diz o Livro de Judite: “Uma mulher hebréia, sozinha, cobriu de vergonha a casa do rei Nabucodonosor. Com efeito, eis Holofernes que jaz no chão, decapitado” (14,18). Adonái, Senhor, Deus grande e admirável, a Vós o louvor e a glória, a Vós que nos destes a salvação pela mão da vossa Filha e Mãe, a gloriosa Virgem Maria! No trecho citado no início, prestemos atenção às palavras “ofereceu creme numa taça de príncipes”. São estas palavras que nos deram motivo para as considerações preliminares. Vejamos o que significam a taça, os príncipes e o creme. Na copa é representada a humilde condição do pobre, nos príncipes, os apóstolos; e, no creme, a humanidade de Cristo. Em sua humilde condição de pobreza – que até os “príncipes” (os apóstolos) teriam tido, ricos na fé, mas pobres neste mundo –, Maria ofereceu, no templo, o creme, quer dizer, o Filho que tinha gerado, do qual diz o profeta Isaías: “Nutrir-se-á de mel e coalhada” (7,15). No mel é indicada a divindade; na coalhada, a humanidade do Salvador. Ele nutriu-se de mel e coalhada quando uniu, em si mesmo, a natureza divina e a humana e, por isso, “aprendeu”, isto é, fez com que também nós aprendêssemos a “rejeitar o mal e a escolher o bem” (Is 7,15). Em sua pobreza, Maria ofertou o Filho e, com ele, a oferta dos pobres, isto é, um par de rolas ou duas pombinhas, como prescrevia a lei de Deus. “Quando uma mulher engravidar, e der à luz a um filho homem, será impura por sete dias” (Lv 12,2), à exceção, porém, daquela que deu à luz permanecendo virgem. Nem o Filho nem a Mãe precisavam de ofertas para purificar-se, mas o fizeram para que nós fôssemos libertados do temor da lei, isto é, da prescrição da lei que era observada por medo. E continuava a lei: “Quando os dias de sua purificação se
completarem, isto é, após quarenta dias, deverá oferecer um cordeiro na entrada da tenda. Se não o encontrar ou não tiver a possibilidade de oferecer um cordeiro, oferecerá duas rolas ou duas pombinhas”( Lv 12, 6.8). Esta era a oferta dos pobres, que não tinham a possibilidade de oferecer um cordeiro, e isto é dito porque em tudo deveriam manifestar-se a humildade e a pobreza do Senhor e de sua Mãe. E fazem esta oferta fazem aqueles que são realmente pobres. Observe-se que, se a rola perder o companheiro, ficará sozinha para sempre. Vai embora solitária, não bebe água límpida, não sobe sobre um ramo verde. A pomba também é simples. Tem o ninho mais rústico e pobre entre os demais pássaros, a ninguém fere com as unhas nem com o bico. Não vive de rapinas. Com o bico nutre seus filhotes com o que ela mesma se nutriu. Não come cadáveres. Nunca ataca os outros pássaros nem os mais pequeninos. Alimenta-se de grãos. Esquenta sob as asas, como se fossem seus, os filhotes dos outros. Mora na beira dos rios para defender-se do gavião.
Faz o ninho entre as pedras. Quando a tempestade ameaça, refugia-se no ninho. Defende-se com as asas. Voa em grupo. Seu canto é como um gemido. É prolífica e alimenta os gêmeos. Observe-se também que quando as pombas criam e os pequenos crescem, o macho vai bicar na terra salgada, coloca no bico dos pequenos aquilo que pegou, para que se acostumem à comida. E se a fêmea, pelo sofrimento do parto, demora para voltar, o macho a bica e a empurra com força para dentro do ninho. Também os pobres no espírito, isto é, os verdadeiros penitentes, dado que pecando mortalmente perderam seu “companheiro”, isto é, Jesus Cristo, vivem sozinhos na solidão do espírito e do corpo, longe do tumulto das coisas temporais. Não bebem a água clara dos gozos terrenos, mas aquela turva da dor e do pranto. “A minha alma está perturbada, diz o Senhor. O que direi?” (Jo 12,27). Não sobem nos ramos verdejantes da glória temporal de que diz o profeta Ezequiel: “Levam os ramos no nariz” (8,17). Os escravos da luxúria carregam no nariz o ramo da glória temporal para não sentir o fedor do pecado e o mau cheiro do inferno. Além disso, os verdadeiros penitentes são simples como as pombas. O lugar em que moram e a cama em que dormem é rústica e pobre. Não ofendem ninguém. Aliás, perdoam a quem os ofende. Não vivem de rapina, mas distribuem suas coisas. Confortam e sustentam, com a palavra da pregação, aqueles que lhes são confiados e partilham alegremente com os demais a graça que lhes foi dada. Não se unem aos cadáveres, isto é, ao pecado mortal. Diz o verso: “Alguns cadáveres caíram pela espada, outros de morte natural”. Não escandalizam nem o grande nem o pequeno. Alimentam-se de puro grão, isto é, da pregação da Igreja e não dos hereges, que é impura. Tornam-se tudo a todos, promovem tanto a salvação de estranhos quanto de conhecidos. Amam a todos no coração de Cristo. Vivem à beira dos rios da Sagrada Escritura para se precaverem de longe das tentações do diabo que trama sempre alguma coisa para raptá-los e assim se defendem. Fazem seus ninhos nas fendas da
rocha, isto é, nas chagas do peito de Cristo e, se houver a tempestade da tentação carnal, correm ao peito de Cristo e ali se refugiam e oram com o Profeta: “Sede para mim, ó Senhor, uma torre firme diante do adversário” (Salmo 60,4) e ainda “Sede, ó Deus, a minha proteção” (Salmo 70,3). Não se defendem com as unhas da vingança, mas com as asas da humildade e da paciência. O jeito melhor de vencer – diz o filósofo – é a paciência”; e ainda: “O refúgio das desgraças é a paciência”. Em união com a Igreja, com a comunidade de fiéis junto deles, eles se elevam até as coisas celestes. Seu canto é um gemido. Suas melodias são lágrimas e suspiros. Cheios de boa vontade, nutrem com o máximo escrúpulo os “dois gêmeos”, isto é, o amor de Deus e do próximo. Observe-se ainda que o penitente deve ter duas virtudes: misericórdia e justiça. A misericórdia, por assim dizer, é a fêmea, que guarda os filhotes; a justiça é o macho. A terra salgada é a carne de Cristo, cheia de amargura da qual o penitente deve sugar o amargor e o salgado e colocá-los na boca dos filhotes, isto é, das suas obras, para que, acostumados com tal alimento, vivam sempre na dor e na amargura, “crucificando a carne com seus vícios e concupiscência” (Gal 5,24). Não se esqueça também de que a discrição (prudência) é a mãe de todas as virtudes. Sem ela não se deve oferecer sacrifício. Por isso, se a pomba, isto é, a misericórdia, demora para voltar até seus filhotes (às obras boas) por causa do parto, isto é, da dor, dos gemidos e do arrependimento, a justiça, como macho, deve dirigi-la e guiá-la com uma certa energia, para que nutra os filhotes (as boas obras) e, nutrindo-os, os guarde. O penitente, portanto, arrependa-se de seus pecados, mas de modo tal a não tirar de si mesmo o necessário, sem o que não poderia viver. E, assim, quem oferecer tais rolas e pombas, o sumo sacerdote Jesus Cristo o libertará de qualquer fluxo de sangue, isto é, de qualquer impureza do pecado.
(Sermões de Domingos e Festas, volume II, pp.135-139, Edição Mensageiro de Santo Antônio)Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

Jesus intercede por nós junto ao Pai
“Eu roguei ao Pai por vocês: o próprio Pai os ama, porque vocês me amaram e acreditaram que eu saí do Pai” (Jo 16,26). Cristo, sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, mediador entre Deus e os homens, roga por nós ao Pai. Lemos no livro do Levítico: “O sacerdote rogará por eles e o Senhor lhes será propício” (4,20); e novamente: “o sacerdote rogará por ele e pelo seu pecado e este lhe será perdoado” (4,26). Estão muito bem de acordo com tudo isso as palavras do livro dos Números: “Moisés disse a Aarão: “pega o turíbulo, acende-o com o fogo do altar coloca incenso e dirige-te ao povo para orar por ele: porque a ira do Senhor se acendeu e o flagelo já começou. Aarão cumpriu a ordem: foi ao meio do povo já golpeado pelo flagelo, ofereceu o incenso; e permanecendo entre os mortos e os vivos, orou em favor do povo e o flagelo cessou” (Num 16,46-48). “Disse Moisés a Aarão”, isto é, disse o Pai ao Filho: “Pega o turíbulo” da humanidade que foi feito por obra de Beseleel (Nm 31,1) que quer dizer “sombra divina”, sombra do Espírito Santo no seio da Virgem gloriosa que justamente pelo Espírito Santo foi “sombreada” levando-lhe assim o refrigério e extinguindo nela de maneira total a fome do pecado. “Enche” com o fogo da divindade o turíbulo da humanidade em que morou corporalmente a plenitude da divindade.E justamente diz: “do altar”, porque “eu saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16,28) “E coloca incenso” da tua paixão, e assim, qual mediador rogarás em favor do povo que o incêndio do diabo está devastando atrozmente. E Jesus, obediente à vontade de quem mandara, pegou o turíbulo, correu “à morte e morte de cruz”. E estando “na cruz com os braços abertos, entre os mortos e os vivos”, isto é, entre os dois ladrões, dos quais um foi salvo e o outro condenado – ou também “entre os mortos e os vivos”, isto é, entre aqueles que estavam presos no cárcere do inferno e aqueles que viviam na miséria deste exílio – livrou-os todos do incêndio da perseguição diabólica, oferecendo-se a si mesmo como sacrifício de suave odor. E justamente de si mesmo ele diz: “Eu rogarei ao Pai por vocês”. E João, em sua carta canônica, escreve: “Nós temos um advogado junto ao Pai, Jesus Cristo justo: ele é propiciação – isto é, expiação – pelos nossos pecados” (1Jo 2,1). Por isso é que todos os dias nós O oferecemos ao Pai no sacramento do altar afim de que sempre de novo se ofereça por nossos pecados. Com efeito, nós fazemos como a mulher que tem uma criança pequenina quando o marido nervoso quer agredi-la:
segurando a criança nos braços, coloca-a diante do homem, falando: “Bate nela! Bate nela!” A criança, com lágrimas nos olhos, sofre junto com a mãe. O pai, comovendo-se diante das lágrimas do filho a quem ama intensamente, perdoa a esposa, por causa do filho. Assim também nós: a Deus Pai nervoso com os nossos pecados oferecemos o seu filho Jesus Cristo no sacramento do altar como aliança da nossa reconciliação. E Deus Pai, se não for por nós, pelo menos em consideração a seu Filho amado, afaste de nós os merecidos flagelos e nos perdoe lembrando-se de suas lágrimas, sofrimentos e paixão. O próprio Filho diz por boca do profeta Isaías: “Eu o criei e eu o conduzirei, eu o levarei e o salvarei”(46,4). Observem-se bem os quatro verbos: eu “criei” o homem e o “conduzirei” em meus ombros como uma ovelha perdida e cansada; eu o “levarei” como a mãe carrega a criança nos braços. E que é que pode fazer o Pai senão responder: “Eu o salvarei”? Por isso é que Cristo diz com muita propriedade: “Eu rogarei ao Pai por vocês; o próprio Pai os ama porque vocês me amaram e acreditaram que eu saí do Pai”. Pai e Filho são uma coisa só. O próprio Filho o afirmou: “Eu e o Pai somos uma coisa só” (Jo 10,30). Quem ama o Pai, ama também o Filho, e o Pai e o Filho o amam. No Evangelho de João, com efeito, o Filho diz: “Quem me ama será amado pelo meu Pai e eu também o amarei e me manifestarei a ele (14,21). Por tudo quanto diz respeito a este amor, estão de acordo também as palavras da carta de São Tiago: “Quem fixa o olhar sobre a lei da perfeita liberdade e lhe permanecer fiel, não como quem escuta e se esquece, mas como quem que a coloca em prática, este sim, será feliz em praticá-la” (1,25). A lei da perfeita liberdade é o amor de Deus que torna o homem perfeito em tudo e livre de toda escravidão. Diz o Salmo (36,31), sobre o justo: “A lei do seu Deus está em seu coração”.
Com efeito, no coração do justo está a lei do amor de Deus e por isso diz Deus: “Filho, dê-me seu coração!” (Pv 23,26). Como o falcão tira dos pássaros que apanha, antes o coração e o come, assim também Deus nada procura e nada ama no homem mais do que o coração no qual está a lei do amor e por isso “seus passos não vacilarão” (Sl 36,31). Os passos dos justos são as suas obras ou mesmo os afetos do coração que nunca vacilarão, isto é, nunca cairão no laço da sugestão diabólica nem escorregarão na praça da vaidade mundana. Sobre o laço fala Jó: “Seu pé será preso pelo laço e a sede se lançará contra ele” (18,9). O pé do inimigo está preso no laço da má sugestão e assim lança-se contra ele a sede da cobiça. Sobre a escorregada fala Jeremias: “Nossos pés escorregaram no caminho rumo às nossas praças” (Lm 4,18). Praça vem da palavra grega platós, que significa largura. Nossos pés – ditos aqui em latim “vestigia”, porque por meio deles se investiga, isto é, descobre-se o percurso de quem passou – estão indicando as obras em base
às quais alguém é reconhecido. Na imensidão suja do prazer mundano escorregam as obras dos pecadores, porque caem de pecado em pecado e por fim se arruinam no inferno. Diz o salmo: “Seus caminhos tornem-se escuros e escorregadios e o anjo do Senhor”, isto é, o anjo mau (ele também é criatura de Deus!) “os persiga” (34,6) até que os precipite no abismo do inferno. Ao invés, os passos do justo não vacilam, porque em seu coração está a lei do amor e quem lhe é fiel “encontrará a felicidade em observá-la”. O amor de Deus infunde a graça na vida presente e a felicidade da glória na vida futura. A ela nos conduza Aquele que é bendito nos séculos dos séculos. Amém. “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas em suas necessidades e conservar-se puros neste mundo” (Tg 1,26). A religião é chamada assim porque por meio dela nós “ligamos” a nossa alma ao único Deus para render-lhe o culto divino. Escutem as pessoas religiosas o que é que diz o Senhor no Apocalipse: “Eu não imporei sobre vocês outros pesos: segurem aqueles que vocês já têm”(2,24), isto é, o Evangelho! E a verdadeira religião consiste nessas duas coisas: na misericórdia e na inocência. Com efeito, ordenando visitar os órfãos e as viúvas, ela sugere tudo o que devemos fazer pelo próximo; e mandando preservar-nos sem mancha neste mundo, mostra-nos tudo aquilo em que nós devemos ser castos. Peçamos, portanto, irmãos caríssimos, a nosso Senhor Jesus Cristo que nos infunda a sua graça com que possamos inclinar-nos e chegar à plenitude da verdadeira felicidade, rogue por nós junto ao Pai, nos conceda a verdadeira religião a fim de que possamos alcançar o reino da vida
eterna. No-lo conceda Aquele que é digno de louvor, princípio e fim, admirável e inefável nos séculos eternos. E toda religião pura e sem mancha diga: Amém, aleluia! (Sermões, Ed. Mens. Sto. Antonio, 1979, V Domingo depois da Páscoa)
Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

Quarta-feira de Cinzas início do jejum
1. Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: “Quando jejuardes, não fiqueis tristes como os hipócritas que desfiguram o rosto para se fazer ver pelos homens que estão jejuando. Em verdade, eu vos digo: eles já receberam a sua recompensa. Tu, ao contrário, quando jejuares, urge a cabeça, lava o rosto para que os homens não vejam que estás jejuando, mas o teu Pai que está no secreto” (Mt 6,16-18).Neste trecho evangélico vamos tratar de dois assuntos: o jejum e a esmola.
I. O jejum
2. “Quando jejuais”. Nesta primeira parte devem-se considerar quatro coisas: • o fingimento dos hipócritas; • a unção da cabeça; • o lavar o rosto; • a ocultação do bem. “Quando jejuais”. Lê-se na História Natural que com a saliva do homem em jejum resiste-se aos animais portadores de veneno; aliás, se uma
cobra o ingere, morre (Plínio). Portanto, no homem em jejum existe verdadeiramente um grande remédio. Adão no paraíso terrestre, até que não comeu (jejum) do fruto proibido, permaneceu na inocência. Eis aí o remédio que mata a diabólica serpente e restitui o paraíso, perdido por culpa da gula. Por isso conta-se que Ester castigou seu corpo com jejuns para fazer cair o orgulhoso Aman e reconquistar aos judeus a benevolência do rei Assuero. Jejuai, portanto, se quiserdes conseguir estas duas coisas: a vitória sobre o diabo e a restituição da graça perdida. Mas “quando jejuais, não fiqueis tristes como os hipócritas”, isto é, não queirais ostentar o vosso jejum com a tristeza do rosto. Hipócrita diz-se também “dourado”, isto é, que tem a aparência do ouro mas, internamente, na consciência é barro. Este é o ídolo dos babilônios (Baal), de quem diz Daniel: “Não te enganes, ó rei, este ídolo, de fora é de bronze; dentro, porém, é só barro” (14,6). O bronze ressoa e pelo aspecto pode quase parecer ouro. Assim também o hipócrita ama o som do louvor e ostenta um pouquinho de santidade.
O hipócrita é humilde no rosto, simples no vestir, submisso na voz, mas lobo em sua mente. Esta tristeza não é segundo Deus. É uma maneira estranha de buscar para si mesmo o louvor, essa de ostentar os sinais da tristeza. Os homens estão acostumados a alegrar-se quando ganham dinheiro. Mas trata-se de negócios diferentes: nestes últimos existe a vaidade, nos outros a falsidade. “Desfiguram-se (em latim exterminant) o rosto”, isto é, desfiguram-no para além dos limites da condição humana. Como se pode orgulhar da beleza das vestes, pode-se também fazê-lo da sua feiúra e falta de cor. Não se deve abandonar nem a uma sem cor exagerada e nem a uma excessiva vaidade: é bom estar na justa medida! “A fim de serem vistos pelos homens…” Qualquer coisa que fazem é apenas, aparência, pintado de um falso colorido. Fazem-no para aparecerem diferentes dos outros e serem chamados “super-homens”, até mesmo por causa da aviltação. “…jejuam”. O hipócrita jejua para receber louvor disso, o avarento para encher o bolso, o justo para agradar a Deus. “Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa”. Eis a recompensa do prostíbulo, de que diz Moisés: “Não prostituas tua filha” (Lv 19,29). Filha representa as obras deles: colocam-nas no prostíbulo do mundo para receberem a recompensa do louvor. Seria loucura de quem vendesse como uma moeda de chumbo uma preciosa moeda de ouro. Na realidade vende por um preço muito barato algo de grande valor, aquele que faz o bem só para ser louvado pelos homens. 3. “Tu, ao contrário, quando jejuas, unge a cabeça, lava o rosto”. Isto concorda com o que diz Zacarias. “Isto diz o Senhor dos exércitos: O jejum do quarto mês, do quinto, do sétimo e do décimo mês serão para a casa de Judá dias de alegria e felicidade, dias de grande festa” (Zc 8,11). A “casa de Judá” significa “que manifesta” ou “que louva” e representa os penitentes que manifestando e confessando seus pecados prestam louvor a Deus. Destes é e deve ser o jejum do quarto mês, porque jejuam (abstêm-se, de quatro coisas: soberba do diabo, impureza da alma, glória do mundo e injúria ao próximo. “Este é o jejum que eu amo”, diz o Senhor (Is 58,6). O jejum do quinto mês consiste em afastar os cinco sentidos dos pensamentos e prazeres ilícitos. O jejum do sétimo mês é a representação da cobiça terrena; com efeito como se lê que o sétimo dia não tem fim, assim também nem a cobiça do dinheiro chega ao fundo o suficiente. O jejum do décimo mês consiste em deixar de perseguir um fim mau. O final de cada número é o dez: quem quiser contar além tem que começar de novo do um. O Senhor se lamenta pela boca do profeta Malaquias: “Vós me roubais e ainda me dizeis: Em que coisa nós te roubamos? No dízimo e nas primícias (3,8), isto é, na finalidade má e no início de uma intenção perversa. Preste-se atenção, que o profeta coloca o dízimo antes das primícias, porque é sobretudo pela finalidade perversa que é condenada toda a obra precedente. Este jejum transforma-se para os penitentes em alegria da mente felicidade de amor divino e em esplêndida solenidade de celeste convivência. Isto quer dizer ungir a cabeça e lavar o rosto. Unge a cabeça aquele que em seu interior está cheio de alegria espiritual. Lava o rosto aquele que orna as suas obras com a honestidade da vida.
4. O outro sentido. “Tu, ao contrário, quando jejuas…”. São muitos os que nesta Quaresma, jejuam e no entanto continuam em seus pecados. Estes não ungem a cabeça. Há um triplo unguento: o lenitivo (sedativo), o corrosivo e o “pungitivo”. O primeiro é produzido pelo pensamento da morte, o segundo pelo pensamento da presença do futuro Juiz e o terceiro pelo pensamento da geena. Há a cabeça coberta de furúnculo, verrugas e bentiligo. O furúnculo é uma pequena protuberância superficial cheia de podridão (pus); verruga é uma
excrescência de carne supérflua, pelo que verruguento pode significar também “supérfluo”; o bentiligo é uma casca seca que deturpa a beleza. Nestas três doenças estão indicadas a soberba, a avareza e a luxúria obstinada. Tu, ó soberbo, recoloca diante dos olhos da tua mente a corrupção do teu corpo, a podridão e o fedor que terá. Onde estará, então, aquela tua soberba do coração, aquela tua ostentação de riquezas? Aí, então, não existirão mais as palavras cheias de vento, porque a bexiga murcha ao mínimo toque do alfinete.
Estas verdades, meditadas no íntimo de cada um, ungem a cabeça feridenta, isto é, humilham a mente orgulhosa. Tu, ó avarento, lembra-te do último exame, onde haverá o Juiz justo, estará a carnífice pronto a atormentar, os demônios que acusam, a consciência que remorde. “Então a tua prata será jogada fora, o ouro se tornará sujeira, o teu ouro e a tua porta não poderão livrar-te do dia da ira do Senhor (Ez 7,19). Estas verdades, meditadas com atenção, destróem e tiram as verrugas do supérfluo e os dividem entre aqueles que nem o necessário têm. Por isso, quando jejuas, unge tua cabeça com este unguento, para que o que tiras de ti mesmo seja dado ao pobre. E tu, ó luxurioso, começa a pensar na geena do fogo inextinguível, onde haverá morte sem morrer, fim sem terminar, onde se procura mas não se encontra a morte, onde os condenados engolirão a língua e amaldiçoarão o Criador. Lenha daquele fogo serão as almas dos pecadores e o sopro da ira de Deus as incendiará. Diz Isaías: “Desde ontem”, isto é, desde toda a eternidade, “está preparado o Tofet”, a geena do fogo, “profundo e vasto. Fogo e muita lenha são seu alimento; o sopro do Senhor o acenderá como torrente de enxofre” (Is 30,33). Eis o unguento que punge, que penetra, capaz de sarar a mais obstinada luxúria. Como prego tira prego, assim estas verdades, meditadas assiduamente, são em grau de reprimir o estímulo da luxúria. Tu, portanto, quando jejuas, unge a cabeça com este unguento.
5. “Lava o rosto”. As mulheres, quando querem sair em público, ficam na frente do espelho e se descobrirem alguma mancha no rosto, logo se limpam com água. Assim também tu, olha no espelho da tua consciência. E se encontrares alguma mancha de pecado, vai imediatamente à fonte da confissão e, quando
na confissão se lava com lágrimas o rosto do corpo, também o rosto rosto da alma fica limpo e iluminado.

Uma observação: as lágrimas são luminosas na escuridão, são quentes contra o frio, são salgadas contra o fedor do pecado. “Para que os homens não vejam que estás jejuando”. Faz jejum para os homens quem busca os aplausos deles. Faz jejum para Deus quem sofre por seu amor e partilha com os outros aquilo que tira de si mesmo. “Mas só o teu Pai que está no secreto”. Acrescente-se: o Pai está no secreto por causa da fé e recompensa aquilo que é feito em secreto. Portanto, deve-se jejuar somente lá onde ele vê. E é preciso que quem jejua, jejue de tal modo que agrade àquele que carrega no coração. Amém.

II. A esmola
6. “Não acumuleis para vós tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde os ladrões assaltam e roubam” (Mt 6,19). A ferrugem corrói os metais, a traça corrói as roupas; o que se salva destes dois flagelos, os ladrões roubam. Com estas três expressões é condenada toda forma de avareza. Vejamos o significado moral das cinco palavras: terra, tesouros, ferrugem, traça e ladrões. A terra, assim chamada porque se seca (em latim “torret”) pela seca natural, representa a carne que é de tal modo sedenta que nunca diz: chega! Tesouros são os preciosos sentidos do corpo. A ferrugem, doença do ferro, assim chamada do verbo latim “eródere”, indica a impureza que, enquanto parece agradar, acaba com a beleza da alma e a corrói. A traça, assim chamada porque “segura”, indica o orgulho ou então a ira. Os ladrões (em latim
“fures”, de furrus = obscuro), que trabalham na escuridão da noite, representam os demônios. Portanto, se carregamos alguma coisa na carne, escondemos os tesouros na terra, quer dizer: enquanto usamos os preciosos sentidos do corpo nos desejos terrenos ou da carne, a ferrugem; isto é, a impureza, os corrói. Além disso, o orgulho, a ira e demais vícios destróem a roupa dos bons costumes e, se sobrar ainda alguma coisa, os demônios a roubam, pois estão sempre interessados justamente nisso: roubar os bens espirituais. “Acumulai-vos de tesouros no céu”. Imenso tesouro é a esmola! Diz S. Lourenço: “As mãos dos pobres é que colocaram nos tesouros celestes as riquezas da Igreja!” Acumula tesouros no céu quem dá a Cristo e dá a Cristo quem dá ao pobre: Aquilo que fizestes a um destes mais pequeninos, o fizestes a mim! (Mt 25,40).
“Esmola” é uma palavra grega que em latim se diz “misericórdia”. Por sua vez misericórdia significa “que irriga o mísero coração”. O homem irriga o pomar para colher os frutos. Tu, também, irriga o coração do pobre miserável através da esmola que é chamada água de Deus para obter seus frutos na vida eterna. Seja o pobre o teu céu! Coloca nele o teu tesouro, para que nele esteja sempre o teu coração. E isso, sobretudo agora, durante a santa Quaresma. Onde está o coração, aí também está o olho; e onde estão o coração e o olho, alí também está a inteligência, sobre a qual diz o salmo: “Feliz aquele que atende (“intelligit” = tem cuidado) ao mísero e ao pobre” (40,2). Daniel disse a Nabucodonosor: “Seja-te aceito, ó rei, o meu conselho: desconta teus pecados com a esmola, desconta tuas maldades com obras de misericórdia para com os
pobres” (Dn 4,24). Muitos são os pecados, muitas são as maldades e por isso, muitas devem ser as esmolas e muitas as obras de misericórdia para com os pobres. Assim resgatado por elas da escravidão do pecado, possais voltar livres à pátria celeste. Vo-lo conceda Aquele que é bendito nos séculos. Amém.
7. Lê-se no Livro dos Juízes que “Gedeão invadiu os acampamentos de Madiã com tochas, trombetas e ânforas” (7,16…) Isaías também diz: “Eis o Dominador, o Senhor dos exércitos quebrará com o terror a broca de barro; os de alta estatura serão cortados e os poderosos serão humilhados. O centro da selva será destruído a ferro e o Líbano cairá com seus altos cedros” (10,33-34). Vejamos o significado moral de Gedeão, tochas, trombeta e ânforas. Gedeão quer dizer “que gira no útero” e indica a pessoa penitente que, antes de se apresentar à confissão, deve girar no útero da sua consciência em que foi concebido e gerado o filho da vida ou da morte. Ela tem que pensar se já se confessou de todos os seus pecados; e se, depois de ter se confessado, recaiu nos mesmos pecados, e quantas vezes; porque neste caso foi muito, mas muito mesmo mais ingrato para com a graça de Deus. Se transcurou a confissão e por quanto tempo permaneceu em pecado sem confessar-se, e se, com pecado mortal, recebeu o corpo do Senhor. Portanto, a pessoa penitente, ouvindo o Senhor que diz “fazei penitência”, deve julgar a si mesma por todos os dias de sua vida, para ver se ela é “Israel”, isto é, alguém que vê a Deus. Todos os anos, durante a Quaresma, deve analisar a própria consciência, que é a casa de Deus e tudo aquilo que nela encontrar de nocivo ou supérfluo deve
circuncidar na humildade da contrição; e deve também considerar o tempo passado, procurando com diligência aquilo que cometeu, omitiu e, depois disso, voltar sempre ao pensamento da morte que deve ter diante dos olhos, aliás, morar mesmo neste pensamento.
8. A pessoa penitente, como atento explorador, feito assim o giro, deve logo acender a lâmpada que arde e ilumina: nela é indicado o coração contrito o qual, pelo fato de arder também ilumina. E eis o que pode fazer a verdadeira contrição. Quando o coração do pecador se acende com a graça do Espírito Santo, ele arde pela dor e ilumina pelo conhecimento de si mesmo; e então, a consciência, cheia de tribulações e remorsos, e a atormentada impureza é destruída porque seja interna que externamente a paz volta a florescer. E o esplendor do luxo deste mundo, a dissolutez carnal são destruidos desde a alma até a carne, porque tudo o que houver de imundo tanto na alma como no corpo, é queimado pelo fogo da contrição. Feliz aquele que queima e ilumina com esta lâmpada! Dela diz Jó: “lâmpada desprezada nos pensamentos dos ricos, preparada para o tempo estabelecido” (12,5). Os pensamentos dos ricos deste mundo são: guardar as coisas adquiridas e suar para adquirir mais ainda. Por isso, raramente ou nunca se encontra neles a verdadeira contrição. Eles desprezam-na porque fixam sua alma nas coisas passageiras. Com efeito, enquanto procuram com tanto ardor o prazer das coisas materiais, esquecem-se da vida da alma que é a contrição e assim caminham ao encontro da morte. Diz a História Natural que a caça dos cervos se faz assim: dois homens saem, um deles toca a trombeta e canta, o cervo segue o canto porque sente uma atração por ele. No entanto, o segundo homem dispara a flecha, atinge-o e o mata. Assim também acontece com a caça dos ricos. Os dois homens são o mundo e o diabo. O mundo, diante do rico, toca a trombeta e canta porque lhe mostra e promete os prazeres e as riquezas. E enquanto o rico estulto segue-o encantado, já que encontra prazer nessas coisas, é morto pelo diabo, levado à cozinha do inferno para ali ser fervido e assado. 9. Eis, porém, que chega o tempo da Quaresma, instituído pela Igreja para perdoar os pecados e salvar
as almas: na Quaresma prepara-se a graça da contrição que agora está à porta espiritualmente e bate. Se quiseres abrir e acolhê-la ceará contigo e tu com ela. E aí, sim, começarás a tocar a trombeta de maneira maravilhosa. Trombeta é a confissão do pecador contrito. Feita a confissão, deve ser dada a satisfação ou
penitência indicada na ruptura da ânfora ou do vaso de barro. É desprezado o barro, o corpo acaba por sofrer; Madiã é interpretada como “do juízo” ou “iniquidade”, isto é, o diabo que, pelo juízo de Deus, já é condenado, é derrotado e a sua iniquidade arrasada. E é isso que diz o profeta Isaías: “Os de estatura alta”, isto é, os demônios “serão cortados” e “os poderosos”, isto é, os homens orgulhosos “serão humilhados” e “o centro da selva”, isto é, a ganância das coisas materiais “será destruída pelo ferro” do temor de Deus; “e o Líbano”, isto é, o esplendor do luxo mundano “com os seus altos cedros”, isto é, as nulidades, os enganos e as aparências, “cairá”. Atenção! A satisfação, a penitência consiste em três coisas: • na oração, naquilo que diz respeito a Deus, • na esmola, no que diz respeito ao próximo, • no jejum, no que diz respeito a si mesmos. E tudo isso para que a carne que, pelo prazer, conduziu ao pecado, pela expiação conduza ao perdão. E isso digne-se conceder-nos Aquele que é bendito nos séculos. Amém.
(Sermões, vol. III, pg. 139ss) Tradução: frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

A incredulidade de Tomé
“Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Então os outros discípulos lhe disseram: ‘Nós vimos o Senhor. “Mas ele lhes disse: ‘Se eu não vir em suas mãos a chaga dos pregos e não colocar os meus dedos no lugar dos pregos e as minhas mãos no seu peito, não acreditarei” (Jo 20,24-25). Tomé quer dizer “abismo” porque, duvidando, alcançou um conhecimento mais profundo e assim sentiu-se mais seguro. Dídimo é uma palavra grega que significa “duplo”, por isso duvidoso (cético). Não foi por acaso, mas por desígnio divino que Tomé não estava com os discípulos e não quis crer naquilo que ouvia contar. Ó ‘desígnio divino! Ó santa dúvida do discípulo! “Se eu não enxergar em suas mãos…” Ele desejava ver reconstituída a tenda de Davi que tinha caído e sobre a qual o Senhor, por boca de Amós, diz: “Naquele dia eu reerguerei a tenda de Davi que caiu e reedificarei as aberturas de suas muralhas (9,11). Em Davi, que quer dizer “de mão forte”, devemos ver a divindade. Na tenda, o corpo do próprio Cristo em que, como numa tenda, habitou a divindade: ‘tenda que caiu com a paixão e com a morte. Por “aberturas” das muralhas pode-se entender as chagas das mãos, dos pés e do peito: o Senhor as reedificou na sua ressurreição. Sobre elas é que Tomé diz: “Se eu não vir em suas mãos as chagas…” O Senhor misericordioso não quis abandonar em sua honesta dúvida aquele discípulo que se tornaria um “vaso de eleição”: tirou-lhe toda sombra de dúvida, misericordiosamente, como tiraria depois a Saulo a cegueira da infidelidade. E eis a concordância nos Atos dos Apóstolos.
Diz Ananias: “Saulo, meu irmão! O Senhor Jesus enviou-me a ti, o mesmo que te apareceu no caminho em que vinhas vindo, a fim de que tu recobres a vista e sejas repleto de Espírito Santo. E improvisamente caíram-lhe dos olhos umas como que escamas e ele recuperou a visão. Levantou-se e foi batizado. Tomou
alimento e sentiu-se fortificado” (At 9,17-19). Realizou-se assim a profecia de Isaías (65,25): “O lobo irá ao pasto junto com o cordeiro”, isto é, Saulo com Ananias que justamente quer dizer “cordeiro”. O corpo da cobra se cobre de escamas. Os Judeus são “as cobras e raça de víboras”. Saulo, imitando a falta de fé dos Judeus, tinha como que recoberto de pele de cobra os olhos do coração, mas depois, caídas as escamas sob a mão de Ananias, manifesta no rosto a luz que recebeu na alma. Assim, sob a mão de Ananias, isto é, de Jesus Cristo que foi conduzido ao sacrifício como um cordeiro. Caíram as escamas da dúvida dos olhos de Tomé e ele recuperou a visão da fé. Profissão de fé de Tomé: confirmação da nossa fé! “Oito dias depois os discípulos estavam de novo em casa; desta vez estava também Tomé. Veio Jesus, com as portas fechadas, colocou-se no meio deles e disse: “Paz a vós!” (Jo 20,26). Não quero explicar de novo aquilo que já foi explicado. “E Jesus disse a Tomé: coloca o teu dedo e olha as minhas mãos; estende a mão e coloca-a no meu peito; não sejas incrédulo, mas tem fé! Respondeu-lhe Tomé dizendo: “Meu Senhor e meu Deus!” E Jesus lhe disse: “Porque me viste, creste. Bem-aventurados os que, mesmo sem terem visto, creram (Jo 20,27-29). Diz o Senhor por boca de Isaías: “Eu te desenhei em minhas mãos (49,16).
Observe-se que, para escrever, são necessárias três coisas: papel, tinta e caneta. As mãos de Cristo eram o papel, seu sangue a tinta, e os cravos a caneta. Cristo, portanto, desenhou-nos em suas mãos por três motivos. Em primeiro lugar, para mostrar ao Pai as cicatrizes das chagas que tinha sofrido por nós e induzi-lo assim à misericórdia. Depois, para não esquecer-se nunca de nós e por isso ele mesmo diz por boca de Isaías: “Pode talvez uma mulher esquecer sua criança e não ter piedade do filho do seu ventre? Mesmo que ela se esqueça, eu não me esquecerei de ti. Eis, eu te desenhei em minhas mãos” (49,15-17). Em terceiro lugar, ele escreveu em suas mãos como nós devemos ser e em que devemos crer. Portanto, não sejas incrédulo, ó Tomé, ó cristão, mas tem fé! “Exclamou Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ etc. Respondendo-lhe, o Senhor não disse: “Pois que tocaste” mas “porque viste”, porque a visão é em certo modo um sentido “global” que em geral é de ajuda aos outros quatro. Diz a Glossa: “Talvez não ousou tocar, mas somente olhou ou talvez olhou também tocando. Via um homem e tocava e, para além disso, eliminada toda dúvida, creu que era Deus, professando assim aquilo que não via. “Tomé, viste-me “homem” e creste-me “Deus”!
“Bem-aventurados os que, mesmo sem terem visto, creram. Com estas palavras Jesus louva a fé dos gentios (pagãos), mas usa o tempo passado porque na sua “presciência” via já como acontecido aquilo que haveria de acontecer no futuro. Disso nós entremos, uma confirmação nos Atos dos Apóstolos quando Felipe interrogou o eunuco, funcionária de Candace, rainha da Etiópia: “Crês de todo coração? E ele respondeu:
“Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus!” E o batizou (8,38). O mesmo se diga onde se fala do centurião Cornélio que Pedro batizou juntamente com toda sua família, em nome de Jesus Cristo. Estes dois que creram em Cristo, prefiguraram a Igreja dos gentios (pagãos) que haveria de se regenerar no sacramento do batismo e crer no nome de Jesus Cristo. É a eles que Pedro fala hoje com as palavras da entrada da missa e diz: “Como crianças recém-nascidas, desejai razoáveis o leite sem engano (= puro) da palavra”(1 P 2,2).
Criança, em latim infans, é assim chamada porque não sabe falar (fari=falar). Os fiéis da Igreja, gerados pela água e pelo Espírito Santo, devem ser in-fantes, não falantes, isto é, que não falam a língua do Egito do qual diz o profeta Isaías: “O Senhor recusará a língua do mar do Egito” (11,15). Com a língua indica a eloqüência, com o mar a sabedoria filosófica e com o Egito o mundo. O Senhor, portanto, recusa a língua do mar do Egito quase, através dos simples e não eruditos, demonstra que a sabedoria do mundo é árida e sem sabor. “Razoáveis, sem engano”. Razoável é aquilo que se faz com a razão. A razão é o olhar da alma, com o qual o verdadeiro é contemplado por si mesmo e não através do corpo ou então é o próprio verdadeiro que é contemplado (Santo Agostinho) Razoáveis, portanto, no que diz respeito a Deus e a nós mesmos, sem engano no que diz respeito ao próximo. “Desejar o leite”. O leite de que fala Agostinho: “O pão dos anjos tornou-se leite dos pequeninos”. O leite (em latim Pac) é chamado assim pela sua cor. Com efeito é um líquido branco. Branco em grego se diz ‘leukós’, em latim albus. A sua substância é produzida pelo sangue, pois, após o parto, se uma parte do sangue ainda não foi consumida para a nutrição no útero, por vias naturais, ela sobe até aos mamilos e tornando-se branco por obra deles, assume a natureza e a substância do leite. E daquele momento, torna-se alimento de todo recém-nascido, porque a substância através da qual acontece a geração é a mesma da nutrição: o leite, com efeito é como o sangue fervido, digerido, não corrompido (Aristóteles). No sangue, que tem um aspecto horrível, é apresentada a ira de Deus. No leite, ao invés, que tem sabor doce e cor agradabilíssima, é representada a misericórdia de Deus. O sangue da ira foi mudado em leite de misericórdia no peito, isto é, na humanidade de Jesus Cristo. É assim que diz o Profeta:
“Mudou os raios em chuva” (Salmo 134,7). Os raios da ira divina transformaram-se em chuva de misericórdia, quando o Verbo se fez carne. O eunuco etíope e o centurião Cornélio são figuras dos pecadores convertidos. Cornélio quer dizer “que entende a circuncisão”. Com justiça, Cornélio e o eunuco têm algo em comum: com efeito os penitentes “tornaram-se eunucos pelo reino dos céus, quer dizer, circuncidam, eliminam de si mesmos os desejos carnais e, crendo no nome de Jesus Cristo, lavam-se na fonte viva do arrependimento e renovam-se no batismo da penitência. Fazem como os elefantes, dos quais diz Solino. “As fêmeas antes dos dez anos ignoram o sexo; os machos, antes do quinze. Por dois anos mantêm relações cinco vezes por ano e não mais. E não voltam entre os companheiros do grupo sem antes se lavarem em águas vivas da fonte.”
Assim também os penitentes e os justos, se caíram em algum pecado, envergonham-se de voltar ao número dos fiéis se antes não se lavarem nas águas vivas das lágrimas e da penitência. Peçamos, portanto, irmãos caríssimos, e supliquemos à misericórdia de Jesus Cristo para que, venha e se firme no meio de nós, extirpe do nosso coração toda dúvida e imprima em nossa alma a fé na sua paixão e ressurreição, a fim de que, juntamente com os apóstolos os fiéis da Igreja, possamos alcançar a vida eterna. No-lo conceda aquele que é bendito, digno de louvor e glorioso pelos séculos eternos. E toda alma fiel responda: Amém. Aleluia!(Sermões, vol I, pp. 241-246) Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv
Haverá um só rebanho e um só pastor
“Tenho ainda outras ovelhas que não são deste rebanho; também a elas eu devo conduzir: e elas escutarão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). A ovelha, um animal macio no corpo e na lã, é chamada em latim “óvis”, de oblação, oferta, porque no início não se ofereciam em sacrifício
touros e sim ovelhas. Ovelhas são os fiéis da Igreja de Cristo que todos os dias sobre o altar da paixão do Senhor e no “sacrifício” do coração arrependido oferecem-se a si mesmos qual hóstia pura, santa e agradável a Deus. “Tenho outras ovelhas”, isto é, os gentios, os pagãos, “que não são deste rebanho”, não são do povo de Israel; “também a estas eu devo conduzir” por meio dos apóstolos e “haverá um só rebanho e um só pastor”. E esta é a Igreja reunida e formada por ambos os povos. Esta é a mulher de que fala o Apocalipse;
“Apareceu no céu um sinal grandioso: uma mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava pelas dores e trabalho de parto” (Ap 12,1-12). Sentido alegórico. Esta mulher representa a Igreja que de bom alvitre é chamada “mulher”, porque fecunda de muitos filhos que gerou pela água e pelo Espírito Santo. Esta é a mulher vestida de sol . O sol é assim chamado por que ele aparece sozinho, depois de ter obscurecido com o seu fulgor todas as demais estrelas. O sol é Jesus Cristo! Ele habita numa luz inacessível cujo esplendor vela e obscurece os frágeis raios de todos os santos, se forem comparados a ele, porque “não há santo como o Senhor” (1R 2,2). Diz Jó: “Mesmo que eu me lavasse com as águas da neve e minhas mãos brilhassem como nunca, assim mesmo tu me jogarias no lodo e minhas próprias roupas teriam horror de mim (Jó 9,30-31). Nas águas da neve é representada o arrependimento das lágrimas e nas mãos que brilham a perfeição do agir. Diz, pois: mesmo se eu me lavasse com as águas da neve, isto é, do arrependimento, e minhas mãos brilhassem com o esplendor de uma conduta perfeita, mesmo assim me jogarias no lodo, isto é, me farias ver que sou ainda sujo e teriam horror de mim, isto é, me tornariam abominável, as minhas vestes, quer dizer, as minhas qualidades ou os membros do meu corpo, se quisesses tratar-me com rigor: mas, ajuda-me, tu, ó Senhor! Diz Isaías: “Todos nós nos tornamos sujos”, isto é, como um leproso; “todas as nossas justiças são como o pano de mulher menstruada; todos nós caímos como folhas e as nossas maldades nos levaram como vento” (64,6). Por isso o único bom, o único justo e santo é aquele sol de cuja fé e de cuja graça a Igreja é vestida. “E com a lua sob seus pés”. A lua, por causa das variações de seu aspecto. Está indicando a instabilidade da nossa mísera condição. Daqui o dito: “O jogo de sorte muda que nem a lua: cresce e diminui, nunca fica a mesma”. Por isso o Eclesiástico diz: “O estulto muda como a lua” (27,12). O estulto, isto é, o seguidor deste mundo, passa dos “chifres” (forma
da lua no primeiro e último quarto) da soberba à “forma arredondada” da concupiscência carnal e vice-versa.
Esta inconstante prosperidade das coisas caducas deve ser posta sob os pés da Igreja. Os pés da Igreja são todos os prelados que devem conduzí-la como os pés conduzem e sustentam o corpo. E sob estes pés devem ser pisados como esterco todas as coisas temporais. Por isso lemos em Atos: “Todos os que possuíam campos ou casas os vendiam, traziam a importância daquilo que tinha sido vendido e a depositavam aos pés dos Apóstolos” (4,34) porque consideravam como esterco todas aquelas coisas. “Tinha sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. As doze estrelas são os doze Apóstolos que iluminam a noite deste mundo. “Vós sois – diz o Senhor – a luz do mundo” (Mt 5,14). A coroa, assim chamada porque é como uma roda em volta da cabeça, de doze estrelas é a fé dos doze apóstolos; e é coroa porque não tolera acréscimo ou diminuição, como todo círculo: e isso porque é completa e perfeita.

A Igreja tem filhos, concebidos como a semente da palavra de Deus, grita pelas dores nos penitentes e sofre no parto pelos esforços de converter os pecadores. Por isso ela, com as palavras de Baruc, diz: “Fui deixada sozinha; me despojei da estola da paz e me vesti com o saco da súplica e gritarei ao Altíssimo por todos os meus dias. Animai-vos, filhos, gritai ao Senhor e ele vos livrará das mãos e do poder dos inimigos.
Ele vos fez partir no luto e no choro, mas vos reconduzirá a mim, o Senhor, na alegria e exultação” (4,19-23).
E isto acontece no dia das Cinzas quando os penitentes são convidados a ficarem fora da igreja e no dia da Ceia do Senhor quando são ali acolhidos. Sentido moral. “Uma mulher vestida de sol”. É a alma fiel de quem diz Salomão: “Quem encontrará uma mulher forte? Seu valor é como aquele das coisas trazidas de longe e da extremidade da terra” (Pv 31,10). Feliz a alma que, revestida pela força do alto, resiste impávida na adversidade e na prosperidade e derrota com coragem os poderes do ar. O valor, o preço desta mulher foi Jesus Cristo que por sua redenção veio de longe; do seio do Pai, em sua divindade e da extremidade da terra, quer dizer, de parentes paupérrimos, em sua humanidade. Ou ainda: por “preço” entendam-se as virtudes. Com este preço se é resgatado, redimido. Diz Salomão: o resgate do homem são suas riquezas (Pv 13,8), isto é, as virtudes (riquezas espirituais) . As virtudes vêm de longe, isto é, do alto; os vícios, ao invés, são nossos familiares, porque provêm de nós mesmos. Esta mulher é vestida de sol. Observe-se que no sol existem três qualidades: candura, esplendor e calor. Na candura é significada a castidade, no esplendor a humildade e no calor a caridade. Com estas três virtudes se confecciona o manto da alma fiel, da esposa do celeste esposo.
Sobre este manto diz Booz a Rute: “Alarga o manto com que te cobres e segura-o com todas as duas mãos.
Ela o estendeu e o segurou estendido e ele colocou seis medidas de cevada e pôs-lhe nos ombros” (Rt 3,15). Booz quer dizer “forte”, Rute “que se vê e tem pressa”. Vejamos o significado da extensão do manto, as duas mãos e as seis medidas de cevada. Rute é a alma que, vendo a miséria deste mundo, a falsidade do diabo, a concupiscência da carne, apressa-se na direção da glória da vida eterna. Alarga este manto quando atribui não a si mas a Deus a sua castidade, a humildade e a caridade e mostra estas virtudes unicamente para a
edificação do próximo. E, para não perdê-las, segura-as com as duas mãos, isto é, com o temor e com o amor de Deus. Nós Vos pedimos, Senhor Jesus, Vós que sois o bom pastor: Guardai-nos como vossas ovelhas, Defendei-nos dos mercenários e do lobo E coroai-nos no vosso Reino Com a coroa da vida eterna. Dignai-vos conceder-nos Vós que sois bendito, glorioso, E digno de louvor por todos os séculos do séculos. E toda ovelha, E toda alma fiel diga: Amém. Aleluia! (Sermões, vol. I, p. 272 e ss, Ed. Mess. Padova, 1979 – II Domingo de Páscoa) Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

Circuncisão do Senhor

2. Depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o menino (Lc 2,21). Nesta primeira parte somos ensinados, em sentido místico, como todos os justos, na ressurreição final, serão circuncidados de toda corrupção. Mas porque ouvistes a palavra circuncidado a respeito do Verbo circuncidado, falaremos brevemente da sua circuncisão. Cristo foi circuncidado só no corpo, porque nada tinha para ser circuncidado no espírito, pois não cometeu pecado e não se encontrou mentira na sua boca (1Pd 2,22). E nem sequer contraiu o pecado (original) porque, como diz Isaías, subiu uma nuvem leve (Is 19,1), isto é, assumiu uma carne imune de pecado. Vindo para os seus, porque os seus não o haviam de receber (Jó 1,11), teve de ser circuncidado, a fim de que os judeus não tivessem nenhum pretexto contra ele, dizendo: és incircunciso, deves desaparecer do teu povo, porque segundo o Gênesis, o macho, cuja carne do prepúcio não for circuncidada, perecerá do seu povo (Gn 17,14). És transgressor da lei, não queremos ouvir-te falar contra a lei. É, portanto, circuncidado, pelo menos por três motivos: primeiro, para cumprir a lei – teve de observar o mistério da circuncisão até que fosse instituído o sacramento do batismo -; segundo, para tirar dos judeus a ocasião de o caluniarem; e terceiro, para nos ensinar a ter coração circunciso, da qual diz o Apóstolo São Paulo: a circuncisão do coração está no espírito e não na letra, e o louvor dele procede não dos homens mas de Deus (Rm 2,29).
3. Depois que se completaram os oito dias. Vejamos o que significam as três palavras: o oitavo dia, o menino e a sua circuncisão. A nossa vida se desenvolve, por assim dizer, em sete dias; vem depois o oitavo da ressurreição final. Diz o Eclesiastes: Reparte com sete e mesmo com oito, porque não sabes os males que te podem vir sobre a terra (11,12). Como se dissesse: dedica os sete dias da tua vida às boas obras, porque receberás por eles recompensa no oitavo da ressurreição; neste dia sobrevirá um mal enorme sobre a terra, ou seja, para aqueles que amam a terra, que é ignorado por todo o homem. Na eira correrá o vento, os grãos serão separados da palha (cf Mt 3,12; Lc 3,17) e as ovelhas dos bodes (cf Mt 25,32). O vento na eira significa a separação do juízo final. Os grãos são os justos que serão acolhidos no celeiro celestial. Diz Jó: Irá para o sepulcro com muitos anos, como se amontoa o trigo a seu tempo (Jó 5,26). O sepulcro é a vida eterna, onde os justos entrarão cheios das boas obras, e estarão a salvo dos ataques dos demônios, como um que se esconde num sepulcro para fugir da presença dos homens. A palha, isto é, os soberbos, superficiais e inconstantes, serão queimados no fogo. Desses diz Jó: Serão como palhas em face do vento e como a cinza que o redemoinho espalha (Jó 21,18) Os cordeiros, ou ovelhas, isto é, os humildes e os inocentes, serão colocados à direita de Cristo. Deles escreve Isaías: Assim como o pastor apascenta o seu rebanho, nos seus braços recolherá os cordeiros e os tomará no seu seio; ele mesmo levará as prenhas (Is 40,41).
4. Observa que nestas quatro palavras: apascentar, recolher, tomar e levar, mostram as quatro prerrogativas que os corpos dos justos terão no oitavo dia, ou seja, na ressurreição final. Apascenta pela claridade: Doce é a luz e deleitável é aos olhos ver o sol (Ecl 11, 7); e os justos fulgirão como o sol no reino de Deus (cf Mt 13,43). Se o olho, mesmo corruptível, se deleita assim com o falso brilho do miserável corpo, quanto, imagina, não será o deleite do verdadeiro esplendor do corpo glorificado? Recolherá com a imortalidade: a morte desagrega, a imortalidade reúne. Tomará pela agilidade: toma-se ou pega-se com facilidade o que é ágil. Levará com sutileza: o que sutil se leva com facilidade. As cabras, porém, isto é, os luxuriosos, serão suspensas pelas patas nos ganchos do inferno. Com efeito, o Senhor ameaça, pela boca do profeta Amós, as vacas gordas (cf Am 4,1), isto é, os prelados da Igreja, soberbos e luxuriosos: Eis que virão dias para vós, e vos levarão, levarão os demônios, nos ganchos, e meterão os restos do vosso corpo em caldeiras a ferver. E vós saireis pelas brechas, uma em frente da outra, e sereis lançados para o Hermon (Am 4,2-3). Hermon significa maldição, porque excomungados e amaldiçoados pela Igreja triunfante, irão para o suplício do inferno. Portanto, tudo isto, a glória e a pena, será retribuído a cada um no oitavo dia, isto é, na ressurreição, conforme o que fez na semana desta vida. Lê-se no livro do Gênesis: Jacó serviu por causa de Raquel sete anos; e os dias pareciam-lhe poucos em comparação com a grandeza do amor (Gn 29,20). Era, de fato, formosa de rosto e de gentil presença (Gn 29,17). E continua: E, passada a semana, casou-se com Raquel (Gn 29,28). E mais adiante: Eu era, de dia e de noite, queimado pelo calor e pelo gelo, e o sono fugia-me dos olhos (Gn 31,40). Ó amor da beleza! Ó beleza do amor! Ó glória da ressurreição, quanto fazes sofrer o homem, até chegar às tuas núpcias! O justo, em todos os sete dias da sua vida, serve na indigência do corpo e na humildade do espírito; de dia, isto é, quando lhe sorri a prosperidade com o calor da vanglória; de noite, quando lhe sobrevém a adversidade e é atormentado pelo gelo da tentação diabólica. Assim, foge dele o sono do repouso, porque dentro há lutas, e fora, temores (cf 2Cor 7,5). Teme o mundo, é combatido por si mesmo, e no entanto, no meio de tantos sofrimentos, os dias parecem-lhe poucos, por causa da grandeza do amor. Com efeito, a quem ama, nada é difícil (Cícero). Ó Jacó, por favor, trabalha com paciência, sofre com humildade. Acabada a semana da presente miséria, gozarás das desejadas núpcias da ressurreição gloriosa, em que serás liberto de todo o trabalho e servidão da corrupção.
5. Depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o menino. Diz menino e não velho. Para saber quem é este Menino, leia o sermão do Natal. Na ressurreição final, todo eleito será circuncidado, porque ressuscitará para a glória, como diz Santo Isidoro, sem vício algum, sem defeito nenhum. Ficará longe toda doença, todo impedimento, toda corrupção, toda privação, e qualquer outra coisa indigna daquele reino do sumo Rei, no qual os filhos da ressurreição e da promessa hão de ser iguais aos Anjos de Deus (cf Lc 20,36). Então existirá a verdadeira imortalidade. A condição primeira do homem foi a faculdade de não morrer.
Por causa do pecado, tocou-lhe a pena de não poder deixar de morrer; espera-o na futura felicidade, a terceira condição: o não poder morrer. Então teremos em modo perfeito o livre arbítrio, que foi dado ao primeiro homem para que não pecasse. Será, de fato, perfeito quando este livre arbítrio alcançará o não poder
pecar. Ó oitavo dia, tão esperado, que circuncidas do menino todos os males!
Santo Antônio de Lisboa, Obras Completas, Vol II, pp.689-694; Lello e Irmão – Editores, Porto, 1987. Compilação feita por Frei Antônio Corniatti, OFM Conv

Justiça e Santidade
Justiça é a virtude com a qual, julgando-se corretamente, é dado a cada um o seu. Justiça é como dizer juris status, isto é, o estado de direito. Justiça é o hábito do espírito em atribuir a cada um a dignidade que lhe pertence, tendo em conta a utilidade comum. Fazem parte da justiça: • o temor de Deus • o respeito à religião • a piedade • a humanidade • o gozo do justo e do bom • o ódio do mal • o compromisso da gratidão. O mundo não possui esta justiça porque não teme a Deus, desonra a religião odeia o bem e é ingrato para com Deus.
Será julgado com relação à justiça que não praticou porque não puniu a si mesmo, segundo a justiça, pelos pecados cometidos. Será julgado com relação ‘a justiça, mas não ‘a sua e sim à daqueles que crêem; e do confronto com eles é que receberá a condenação. Cristo não disse: “O mundo não me verá, mas “Vós”, apóstolos, “não me vereis” e isso contra os mundanos que dizem: “Como podemos acreditar naquilo que não vemos? É justiça verdadeira, isto é, é fé que justifica, crer no que não se vê. Ou então: “julgará o mundo com relação à justiça” dos santos. Com efeito, diz o Senhor pela boca do profeta Zacarias: “Será estendido sobre Jerusalém o fio de prumo” (1,16).
O fio de prumo ou chumbinho é um instrumento do pedreiro; em latim se diz: perpendiculum do verbo perpendo que quer dizer controlar, julgar. Consiste em um chumbo ou uma pedra amarrada num barbante e com ele se controla a perpendicularidade das paredes. A justiça dos santos ( a santidade deles) é que nem o fio de prumo que é estendido sobre Jerusalém, isto é, sobre toda pessoa fiel, para medir e ver se sua vida está conforme ao exemplo deles. Todas as vezes que se celebram as festas dos santos, é estendido este fio de prumo sobre a vida dos pecadores. Por isso é que celebramos as festas dos santos para tirarmos da vida deles uma regra para a nossa. É ridículo, portanto, nas solenidades dos santos querer honrá-los com banquetes, quando nós sabemos que eles mereceram o céu através de jejuns.
Amando o mundo e sua glória, dando ao corpo todos os prazeres e acumulando dinheiro, é claro que não imitamos a vida dos santos. Por isso a justiça deles, isto é, a santidade deles será a prova que nós merecemos a condenação. O Julgamento Observe-se que em todo julgamento exigem-se cinco pessoas: o juiz, o réu, três testemunhas. O juiz é o sacerdote. O acusador e réu é o pecador que deve se acusar como réu. As três testemunhas são: contrição, confissão e satisfação ( ou penitência) que testemunham a favor do pecador verdadeiramente arrependido. Diz Agostinho: “Sobe, ó pecador, até o tribunal da tua mente: seja a razão o teu juiz, a consciência o teu acusador, a dor o teu tormento, o temor o teu carnífice. O lugar das testemunhas seja ocupado pelas obras. Os mundanos que não querem submeter-se a tal julgamento, serão condenados com sentença eternamente irrevogável no exame do último julgamento, juntamente com o príncipe deles, o diabo, que já foi julgado.” O apóstolo Tiago, para alertar esses homens a precaver-se do pecado, a amar a justiça, a temer o julgamento, na segunda parte de sua carta acrescenta: “Sabeis muito bem, irmãos meus caríssimos: todo homem esteja pronto a escutar, lento em falar e também lento na ira, porque a ira do homem não realiza a justiça de Deus” (1,19). Todo homem deve estar pronto a escutar o que diz o Apóstolo: “Fugi da fornicação” (1Cor 6,18). Portanto: “esteja todo homem pronto a escutar”.
Todo homem deveria estar pronto a escutar por natureza. Com efeito em latim a orelha é chamada auris como se fosse ávide rapiens, isto é, que agarra avidamente ou ainda hauriens sonum, isto é, que absorve o som. Observe-se que na parte posterior da cabeça não existe carne nem cérebro. Na parte posterior da cabeça está o aparelho da audição. E isso é justo porque a parte posterior da cabeça tem um vácuo, cheio de ar e o instrumento da audição é “aéreo” e portanto, o homem ouve logo, a menos que se interponha algum impedimento. Na cabeça, isto é, na mente em que não há a carne da própria vontade mas o ar da mente devota, passa bem veloz a voz da obediência e por isso é dito: “Ao ouvir-me, logo obedeceu-me” (salmo 17,45). E Samuel no Primeiro Livro dos Reis diz: “Fala, Senhor, que teu servo escuta!”( 3,10).E para
que a obediência penetre mais veloz, é necessário que seja aérea, pura e sensível às coisas do céu, não se apegando a nada das coisas da terra. “Esteja, portanto, todo homem pronto a escutar”. “E lento no falar”. A própria natureza nos ensinou isso fechando a língua com duas portas para que ela não saísse livremente. Com efeito, a natureza colocou na frente da língua como que duas portas, isto é, os dentes e os lábios, para mostrar que a palavra não deve sair a não ser com grande cuidado. Estas duas portas foram fechadas com cuidado por aquele que dizia: “Coloquei guarda em minha boca e porta ao redor de meus lábios” (Salmo 140,3). E corretamente diz: “porta ao redor” ( em latim ostium circumstantiae), porque deve-se guardar não só das palavras ilícitas mas também das ocasiões de falar ilicitamente. Por exemplo: existem pessoas que se envergonham de falar mal de alguém abertamente, mas depois o fazem sob a aparência do elogio e, o que é pior, fazem isso até na confissão. Preste-se atenção, pois não se deve fechar apenas a porta dos dentes mas também a porta dos lábios. Fecha a porta dos dentes e a porta dos lábios aquele que se recusa seja à calúnia seja à adulação. A língua, “mal rebelde”, como diz Tiago, “cheia de veneno mortal” (3,8), fogo que incendeia a floresta das virtudes, incendeia o curso da nossa vida (Tg 3,5-6), arromba a primeira e a segunda porta, sai pelas praças como uma prostituta, faladora e andarilha, inimiga da calma, leva para todos os lugares a desestabilização (Pv 7,8-11). Diz São Bernardo: “Quem poderá calcular quantas coisas ruins comete o pequeno membro da língua, que acúmulo de lixo se ajunta sobre lábios impuros, como é grande o prejuízo causado por uma boca desenfreada! Ninguém avalie de menos o tempo que se perde em palavras ociosas. Justamente porque agora é o tempo favorável e o dia da salvação, a palavra vai embora sem nunca mais voltar e o tempo passa irrevogavelmente. O estulto não sabe aquilo que perde. E dizem: Pode-se passar muito bem uma hora de conversa! Essa hora quem te concedeu foi a generosidade do Criador para obteres o perdão, procurares a graça, fazeres penitência, ganhares a glória”. Igualmente: não exite em definir a língua do caluniador como mais cruel do que
a lança que transpassou o peito de Cristo. A língua, com efeito, transpassa o corpo de Cristo; mas não o transpassa depois de morto e sim o mata justamente transpassando-o. E nem mais cruéis foram os espinhos que se fincaram em sua cabeça, nem os pregos que perfuraram suas mãos e pés, se colocados em confronto com a língua do caluniador que transpassa o próprio coração. Diz o Filósofo: “Não digas coisas torpes. Pouco a pouco, por meio das palavras, acaba-se perdendo até a vergonha”. “Às vezes me arrependi por ter falado, nunca por ter calado”. “Usa mais vezes o ouvido do que a língua”. Portanto, todo homem “seja lento no falar” e assim poderá imitar a justiça dos santos, pois, como afirma Tiago, “aquele que não peca com a palavra é um homem perfeito” (3,2). Seja “lento na ira”, pois ela impede a alma distinguir a verdade. A propósito diz o Filósofo: “Quanto menos reprimires a ira, pela ira tanto mais serás excitado”. “A pessoa irritadiça, quando pára de irar-se, ira-se contra si mesma”. “A ira jamais foi capaz de reflexão”. Por isso é com justiça que se diz: “A ira do homem não realiza a justiça de Deus”. Seja, portanto, todo homem “lento na ira” para não ser golpeado no dia da ira pela irrevogável sentença da condenação, juntamente com o diabo. (IV Domingo de Páscoa, Sermões, Ed. Mess. Padova, 1979, volume I, páginas 322-327) Tradução: frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

Quaresma, tempo de misericórdia, a misericórdia de Deus
Sede misericordiosos como misericordioso é vosso Pai. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado” (Lc 6,36-38). Observe-se que nesta parte do Evangelho estão em evidência cinco mandamentos muito importantes: • Ter misericórdia • Não julgar • Não condenar • Perdoar • Dar. Queremos encontrar a concordância de tudo isso com cinco contos do segundo livro dos Reis (ou segundo livro de Samuel). Primeiro mandamento. “Sede misericordiosos como misericordioso é vosso Pai!”. É chamado de misericordioso quem sofre partilhando da miséria dos outros. Esta “compaixão” é chamada “misericórdia”
porque torna o “coração mísero” (em latim: misericordia, miserum cor) sofrendo com a miséria do outro. Em Deus, ao contrário, a misericórdia é “sem a miséria do coração”. Com efeito, a misericórdia de Deus diz-se “comiseração” (em latim miseratio, como se quisesse dizer “ação de misericórdia” ( em latim misericordiae actio). Neste sentido é que o Senhor diz: “Sede misericordiosos”. E observe-se que, como é tríplice a misericórdia do Pai celeste com relação a ti, assim também, de três modos deve ser tua misericórdia com relação ao próximo. A misericórdia do Pai é graciosa, espaçosa e preciosa. Graciosa porque purifica dos vícios. Diz o Eclesiástico: “Cheia de graça é a misericórdia de Deus no tempo da tribulação, como as nuvens portadoras de chuva no tempo da seca” (35,26). No tempo da tribulação, isto é, quando a alma, atormentada por causa de seus pecados, é inundada pela chuva da graça que a restaura e lava e cancela os pecados.
Espaçosa porque se alarga com o tempo e se expande nas obras boas. Com efeito, diz o Salmo: “A tua misericórdia está diante de meus olhos e me alegro com a tua verdade” (25,3) porque até para mim tornou-se odiosa a minha maldade. Preciosa nas delícias da vida eterna, da qual diz Ana no livro de Tobias: “Quem te honra tem a certeza de que, se sua vida foi colocada à prova, será coroado; se passou através das tribulações, será libertado; se foi oprimido e perseguido, ser-lhe-á concedido entrar na tua misericórdia” (3,21).
A propósito diz o profeta Isaías: “Eu me lembrarei das misericórdias do Senhor e hei de louvar o Senhor por todas as coisas que tem feito por nós e pela multidão de benefícios por ele feitos à casa de Israel, segundo a sua benignidade e segundo a multidão de seus atos de misericórdia” ( 63,7). A tua misericórdia para com o próximo também deve ser de três modos: • deves perdoá-lo, se ele pecou contra ti, • deves instruí-lo, se ele se desviou do caminho da verdade, • deves restaurar suas forças, se ele for um faminto. No primeiro caso, diz Salomão: “É por meio da fé e da misericórdia que são expiados os pecados” ( Pr 15,27). No segundo caso, diz Tiago: “Quem fizer um pecador converter-se de sua vida de pecado, salvará sua alma da morte e cobrirá uma multidão de pecados”( Tg 5,20). No terceiro caso, enfim, diz o Salmo: “Bem-aventurado aquele que tem cuidado do indigente e do pobre” (40,2). Portanto, é com muito boa razão que se diz: “Sede misericordiosos como misericordioso é o vosso Pai!”
4. Concorda com tudo isso aquilo que lemos no segundo livro dos Reis onde se conta que Davi disse a Merib-Baal: “Não temas, porque quero tratar-te com misericórdia por amor a Jônatas, teu pai. Te restituirei todos os campos de Saul, teu avô e tu comerás sempre o pão junto à minha mesa” (2R 9,7=2Sm 9,7). Neste passo é indicada a tríplice misericórdia que se deve ter para com o próximo. Primeiro, quando diz: “por amor de Jônatas”, quer dizer, por amor de Jesus Cristo, o qual disse: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”( Lc 23,34). Com respeito àquele que peca contra ti, deves usar de misericórdia com o coração e com a boca, para perdoá-lo com a boca e com o coração. Em segundo lugar, quando acrescenta: “Restituirei a ti todos os campos de Saul, teu avô”. Campo em latim se diz ager, da palavra ágere que quer dizer fazer, porque nele se faz alguma coisa e simboliza a graça infusa com a unção no batismo: o batizado a recebe para exercitá-la depois nas obras boas. Mas quando Saul, isto é , a alma ungida com o óleo da fé, morre por causa do pecado, então perde a graça e tu lhe restituis quando convertes o batizado de sua vida de pecado. Em terceiro lugar, quando conclui: “E tu comerás sempre o pão junto à minha mesa”. Com efeito, diz Salomão: “Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber”( Rom 12,20=Pr 25,21). Por isso é com muito boa razão que se diz: “Sede misericordiosos”. Portanto: sejamos misericordiosos imitando aquelas aves chamadas grous, das quais se diz que , quando querem chegar a um dado lugar, voam bem alto, quase como querendo localizar, a partir de um observatório mais alto, o território a ser alcançado. Aquela que conhece o percurso vai à frente do bando, sacode-lhe a fraqueza do vôo animando com sua voz. E, se a primeira perde a voz ou fica rouca, imediatamente entra uma outra. Todas têm um grande cuidado para com aquelas que se cansam, de modo que, se alguma estiver cansada, todas se unem, sustentam aquelas cansadas até que com o descanso recuperem as forças. Mesmo quando estão no chão, o cuidado delas não diminui: dividem-se os turnos de guarda de modo que uma sobre dez esteja sempre acordada vigiando. As que estão vigiando ficam segurando nas patas uns pequenos pesos que, se eventualmente caem no chão, logo as avisam que estão cochilando e as acordam. Um grito dá o alarme se surgir um perigo a ser evitado.
Essas aves-grous fogem diante dos morcegos. Sejamos, portanto, misericordiosos como essas aves grous: colocados num observatório mais alto da vida, preocupemo-nos por nós e pelos outros. Sirvamos de guias para quem não conhece o caminho. Com a voz da pregação animemos os preguiçosos, sacudamos os indolentes. Façamos a troca na hora do cansaço, porque, sem alternar o cansaço com o descanso, ninguém consegue resistir por muito tempo. Carreguemos nos ombros os fracos e os doentes para que não venham a cair no meio do caminho. Sejamos vigilantes na oração e na contemplação do Senhor. Seguremos com firmeza entre os dedos a pobreza do Senhor, a sua humildade e a amargura da sua paixão. E se algo de imundo quiser insinuar-se em nós, gritemos logo por socorro e, sobretudo, fujamos dos morcegos, isto é, da vaidade cega do mundo. E por tudo isso, rezemos: Senhor Jesus Cristo, pai misericordioso, Infundi em nós a vossa misericórdia Para que também nós a usemos para conosco e para com os outros, Não julgando nunca a ninguém, Não condenando nunca a ninguém, Perdoando sempre a quem nos ofende E dando sempre nós mesmos e nossas coisas A quem nos pedir. E tudo isso no-lo conceda o próprio Senhor Que é bendito e glorioso Pelos séculos dos séculos. Amém.
(Sermones, Pádua, 1979, Volume I, pp. 459-461) Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv
A ressurreição do Senhor
1. “A amendoeira florescerá, o gafanhoto engordará, o tempero perderá seu sabor” (Ecl 12,5). Exórdio:
Na Ressurreição, a humanidade de Cristo floresceu como a vara de Aarão.
2. Nós lemos no Livro dos Números que a “vara de Aarão germinou, floresceu ficou cheia de brotos e produziu amêndoas” (Nm 17,23). Aarão, sumo pontífice, é figura de Cristo, o qual, “entrou no santuário não com sangue de bodes ou bezerros, mas com o próprio sangue” (Hb 9,12). Ele é o pontífice que “fez de si uma ponte” para que, através dele pudéssemos passar da margem da mortalidade à margem da imortalidade: hoje floresceu a sua vara! A vara é sua humanidade sobre a qual se diz: “A vara do teu poder estende o Senhor desde Sião” (Sal 109,2). Com efeito, a humanidade de Cristo por meio da qual a divindade exercia o seu poder teve origem em Sião, isto é, o povo judeu “porque, como é dito no Evangelho, a Salvação, isto é, o Salvador, vem dos Judeus” (Jo 4,22). Esta vara permaneceu quase seca no sepulcro por três dias e três noites, mas depois floresceu e produziu fruto, porque ressuscitou e nos trouxe o fruto da imortalidade.
I. Sermão Alegórico
3. “Florescerá a amendoeira”. Diz Gregório que a amendoeira é a primeira entre todas as plantas a dar flores; e diz o Apóstolo que “Cristo é o primogênito daqueles que ressuscitam dos mortos” (cf Col 1,18) porque ele ressuscitou por primeiro. Observe-se que a pena dada ao homem era dupla: a morte da alma e a morte do corpo. “No dia em que comeres – disse o Senhor – morrerás “de morte” ( Gn 2,17), da morte da alma e não poderás subtrair-te à lei da morte. Com efeito, uma outra tradução diz com maior precisão “tornar-te-ás mortal”. Veio o nosso samaritano, Jesus Cristo, e sobre estas duas feridas derramou vinho e óleo, porque com o derramamento de seu sangue destruiu a morte da nossa alma. Diz muito bem Oséias: “Eu os livrarei da mão da morte, eu os resgatarei da morte. Ó morte, eu serei a tua morte! Eu serei a tua mordaça, ó inferno!”
(13,14). Do inferno ele pegou uma parte, e outra parte ele deixou à maneira daquele que morde e com a sua ressurreição aboliu a lei da morte, porque deu esperança de ressurgir: “E não haverá mais a morte” (Ap 21,4). A ressurreição de Cristo é indicada pelo óleo que fica acima dos líquidos. A alegria provada pelos apóstolos na ressurreição de Cristo superou qualquer outra alegria por eles experimentada, quando Jesus ainda estava com eles em seu corpo mortal. Também a glorificação dos corpos superará qualquer outra alegria: “Os discípulos se alegraram ao verem o Senhor” (Jo 20,20).
4. “E o gafanhoto engordará”. Aqui é representada a Igreja primitiva que com a flor da ressurreição do Senhor tornou-se grande e encheu-se de maravilhosa alegria. Escreve Lucas: “Pois que pela grande alegria ainda não acreditavam e ficavam emocionados, Jesus lhes disse: “Tendes aqui algo para comer?
“Ofereceram-lhe então uma porção de peixe frito e um favo de mel” (24,41-42). Peixe frito é figura do nosso Mediador que sofreu a paixão, preso com o laço da morte nas águas do gênero humano, “frito”, por assim dizer, no tempo da paixão; ele é para nós também o favo de mel, por causa de sua ressurreição que hoje celebramos. O favo apresenta o mel na cera e isso representa a divindade revestida pela humanidade. É nesta mistura de cera e mel que se indica que Cristo acolhe no eterno repouso, no seu corpo aqueles que quando sofrem tribulações por causa de Deus, não desistem do amor para com a eterna doçura. Os que, aqui na terra, são por assim dizer “fritos” pela tribulação, serão saciados no céu com a verdadeira doçura. Observe-se que hoje o Senhor apareceu cinco vezes: primeiro a Maria Madalena, depois novamente a ela junto com outros, quando saiu correndo a dar o anúncio aos discípulos; depois a Pedro; depois a Cléofas e seu companheiro e finalmente aos discípulos, a portas fechadas, após o retorno dos dois discípulos de Emaús. Eis, portanto, em que sentido o gafanhoto engordou com a flor da amendoeira, quer dizer, em que sentido a Igreja primitiva se alegrou pela ressurreição do Senhor. O gafanhoto, quando o sol queima, salta e voa.
Assim a Igreja primitiva: quando no dia de Pentecostes o Espírito Santo a inflamou, saltou e voou pelo mundo inteiro através da pregação. “Por toda a terra ecoou o som de sua voz” (Sal 18,5).
Assim engrandecida a Igreja, dissipou-se o tempero que é uma plantinha que se gruda na pedra e representa a Sinagoga a quem foi dada lei escrita sobre a pedra para mostrar sua dureza à qual permaneceu sempre apegada. “Este é um povo de cabeça dura” (Ez 34,9). Quanto mais a Igreja crescia, tanto mais a
Sinagoga se dispersava, isto é, perdia o eu sabor. Está de acordo com tudo isso o que se lê no Livro dos Reis: “Houve uma longa luta entre a casa de Saul e a casa de Davi. A casa de Davi crescia e tornava-se cada vez mais forte enquanto a casa de Saul enfraquecia dia-a-dia.” (2R 3,1). A casa de Davi é a Igreja. A casa de Saul – que quer dizer “aquele que abusa” – representa a Sinagoga que, abusando dos dons especiais de Deus, recebeu o libelo do repúdio e abandonou o tálamo do esposo legítimo. Quão longa tenha sido a luta entre a Igreja e a Sinagoga, mostram-no os Atos dos Apóstolos. A Igreja crescia porque “a cada dia o Senhor acrescentava a ela aqueles que eram salvos” (2,47). Ao invés, a Sinagoga, a cada dia diminuía. “Chama o seu nome de ‘Não meu povo’ porque vós não sois o meu povo e eu não serei o vosso Deus”. E ainda: “Eu me esquecerei totalmente deles. Ao contrário, terei misericórdia da casa de Judá” (Os 1,9), isto é, da Igreja. A Jesus Cristo honra e glória por todos os séculos do séculos. Amém. Sermões Dominicais e Festivos, 1979 Ed. Messaggero, Padova, Volume III, pp. 179-182
Tradução: Frei Geraldo Monteiro, OFM Conv

A Ascensão do Senhor
II. O envio dos Apóstolos para a pregação: sentido moral

6. Eis os sinais que acompanharão aqueles que crerem. Àqueles que derem o coração a Deus, acompanhá-los-ão sinais, porque já sobre o seu coração há o sinal de que se lê nos Cânticos: Põe-me como um sinal em cima do teu coração (Cant 8,6). Quando queremos defender dos ladrões os nossos bens ou a nossa casa, costumamos pôr ali a insígnia ou a bandeira do rei ou de algum grande homem, para que à sua vista temam seguir para a frente. Também se queremos defender o nosso coração dos demônios, ponhamos sobre ele Jesus, que é salvação. E onde há salvação, ali há saúde. Eis os sinais: Em meu nome expulsarão demônios (Mc 16,17).
Aos demônios chamam os gregos daimones, isto é, peritos ou sabedores de coisas. A palavra demônio, em grego, significa o que sabe muito. Os demônios são a sabedoria da carne e a esperteza do mundo. Quais demônios, elas atormentam o espírito do homem e afligem o corpo com preocupações. A sabedoria da carne é o demônio noturno, a esperteza do mundo, o demônio meridiano. A sabedoria da carne é cega, embora esteja convicta que é de visão muito aguda – de noite é de visão muito aguda, como se fora um gato. A esperteza do mundo, porque arde com o calor da malícia, é semelhante ao sol do meio-dia. Aquele que deu o coração a Deus, lança fora de si estes demônios, e faz ainda todos os outros sinais dos quais fala o Evangelho. Falarão em novas línguas. A língua do mundo é língua velha, porque fala coisas velhas a respeito do homem velho. Aqueles a quem os sobreditos demônios atormentam, falam esta língua, mas os lançam fora de si, falam línguas novas, em vida nova. Diz Isaías: naquele dia, haverá cinco cidades na terra do Egito a falar a língua de Canaã e a jurar pelo Senhor dos exércitos: Uma será chamada Cidade do Sol (Is 19,18). A terra do Egito, que se interpreta trevas, é o corpo do homem, cheio de trevas pela pena e pela culpa. Nele há cinco cidades, os cinco sentidos do corpo, dos quais um, a vista, se chama Cidade do Sol. Assim como o sol ilumina todo o mundo, a vista ilumina todo o corpo. Estas cidades falam a língua de Canaã, isto é, mudada. Com a mudança da direita do Altíssimo, depõem o homem velho com os seus atos e revestem o novo, vivendo em justiça e verdade.
Assim como a fala exterioriza a palavra escondida no coração, os cinco sentidos do homem, já mudados e convertidos a Deus, falam dele externamente, tal que é no interior. Isto é o que significa jurar, afirmar a verdade. A verdade, pois, da consciência afirma-se com o testemunho da vida santa, para louvor do Senhor dos exércitos, Senhor dos Anjos. Sobre isto ainda se ajunta: Pegarão em serpentes (Mc 16,18). As serpentes simbolizam a adulação e a detração, que serpenteiam e injetam veneno. O adulador serpenteia, o detrator injeta veneno. Aqueles que falam novas línguas tiram estas serpentes de si. Retirem as coisas velhas da vossa boca (1Reis 2,3). A saliva do homem em jejum mata a serpente; a língua em jejum é uma espécie
de língua nova, cujo antídoto anula o veneno. Mas a antiga serpente como que adulava Eva, quando dizia: De forma alguma morrereis de morte (Gn 3,4). Como que detraía de Deus, quando acrescenta: Deus sabe que, na hora em que comerdes dela, se vos abrirão os olhos e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal (Gn 3,5). Como se dissesse: Deus, cheio de inveja, proibiu-vos, não querendo que vos assemelhásseis a ele na ciência. Eis como o adulador se insinua e o detrator injeta o veneno. Aquele, porém, que está em jejum, cospe na boca da serpente, mata-a, e assim se livra dela.
7. Segue: E se beberem algum veneno mortífero, nada sofrerão. Comentário da Glossa: Quando ouvem as sugestões pestilentas, mas não as transformam em obras, isso não lhes faz mal, ainda que bebam algo de mortífero. Diz Isaías: Não beberão vinho cantando árias. A bebida será amarga para os que a beberem (Is 24,9). Por isso, não lhes fará mal. Não bebe o vinho da sugestão diabólica cantando árias quem não consente nela, antes a rejeita, se dói e lamenta. Por isso a própria bebida, a sugestão diabólica, é amarga para os que
a bebem para os que a ouvem e a sofrem. Ao contrário, Joel: Despertai, ó ébrios, e chorai e uivai todos os que pondes as delícias em beber, porque ele foi tirado da vossa boca (Joel 1,5). Assim é a letra, porque as delícias do vinho depressa desaparecem da boca, desde que passa a garganta. Brevíssima demora da doçura quantos males gera aquele que bebe o vinho da sugestão diabólica, consentindo em espírito e em obras! Diz-se aos ébrios com tal vinho: Despertai, recordando o vosso pecado, chorai, arrependendo-vos de coração, uivai, confessando-vos. Portanto, todo o que possuir em si aqueles quatro sinais dos quais falamos, poderá fazer bem o quinto: Imporão as mãos sobre os doentes, e estes ficarão curados. Chama-se doente, por precisar de remédio ou medicamento. Doente é o pecador, que precisa muito de medicamento, do
exemplo de boas obras. Põe as mãos sobre ele para o curar, para voltar à penitência, aquele que o conforta não só com a palavra da pregação, mas também com o exemplo da obra santa. Amém. Santo Antônio de Lisboa, Obras Completas, Lello & Irmão – Editores, Porto, vol. II, pp. 925-929. Compilação: Frei Antônio Corniatti, OFM Conv
Domingo de Pentecostes
V. Os frutos da graça do Espírito Santo

14. E todos repletos do Espírito Santo começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimissem (Atos 2,4). São repletos do Espírito Santo. Ele é o único que pode tornar cheia a alma, visto que nem todo o mundo a pode encher. Não recebem outro Espírito, porque não pode receber mais quem está cheio. Por isso, foi dito a Maria Santíssima: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres (Lc 1,28). Nota que no meio das palavras: cheia de graça e bendita és tu entre as mulheres, se diz: o Senhor é contigo. O mesmo Senhor conserva não só interiormente a plenitude da graça, mas também opera, no exterior, a bênção da fecundidade, isto é, das obras santas. Com muita razão ainda, depois de cheia de graça se diz: o Senhor é contigo, já que sem Deus nada podemos fazer ou possuir, nem
sequer conservar o que possuímos. Por isso, depois da graça, é necessário que o Senhor esteja conosco e guarde o que só Ele deu. Quando, pois, ao dar a graça, nos previne, somos seus cooperadores ao guardá-la. E Ele só vigia sobre nós quando também nós vigiamos com Ele. Aparece claro que o Senhor exige de nós esta vigilante cooperação quando diz aos Apóstolos: Não fostes capazes de vigiar comigo por uma hora! Vigiai e orai, para que não entreis em tentação (Mt 26,40-41).
Acertadamente se diz, portanto: E todos ficaram repletos do Espírito Santo. Dele diz o Senhor no Evangelho de hoje: Mas, o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse (Jo 14,26). O Pai enviou o Paráclito em nome do Filho, isto é, para glória do Filho, para manifestar a glória do Filho. Ele vos ensinará, para que saibais; recordar-vos-á, isto é, exortar-vos-á, para que queirais. De fato, a graça do Espírito Santo dá o saber e o querer. Por isso, canta-se hoje na Missa: Vem, Espírito Santo, enche os corações dos teus fiéis, para que possuam ciência, e acende neles o fogo do teu amor, para que queiram realizar o que tiverem aprendido (Seqüência da Missa de Pentecostes). Canta-se ainda: Envia o teu Espírito, e todas as coisas serão criadas com a tua ciência, e
renovareis a face da terra com a boa vontade (cf Sl 103,30). Sobre estas duas coisas há concordância nas Lamentações de Jeremias: Ele do alto enviou fogo sobre os meus ossos e me deu uma lição (Lm 1,13). O Pai no dia de hoje enviou do alto, isto é, do Filho, fogo, a saber, o Espírito Santo, sobre os meus ossos, isto é, sobre os Apóstolos, diz a Igreja, e por ele me deu uma lição, para que saiba e queira.
15. Diga-se, portanto, e todos ficaram repletos do Espírito Santo. A este respeito há concordância no Gênesis: O Senhor fez soprar um vento sobre a terra, e as águas diminuíram; e fecharam-se as fontes do abismo e as cataratas do céu; e foram retidas as chuvas que caíam do céu (Gn 8,1-2). Veja estas quatro coisas: as águas, as fontes, as cataratas e as chuvas. As águas designam as riquezas; as fontes do abismo; as cataratas do céu, os olhos; as chuvas, a abundância de palavras. Quando, pois, o Senhor traz o Espírito Santo para a terra, isto é, o leva ao espírito do pecador, então, diminuem as águas das riquezas, porque são distribuídas aos pobres. Destas águas se escreve no Gênesis: Ao conjunto das águas chamou mares (Gn 1,10).
O amontoar de riquezas não é mais do que amargura de tribulação e de dor. Donde a palavra de Habacuc: Ai daquele que acumula o que não é seu! Até quando amontoará ele contra si o denso lodo? (Hab 2,6). O esterco reunido em casa exala mau cheiro; esparramado, fecunda a terra. Também as riquezas, quando se acumulam sobretudo do que não é seu, mas do alheio, geram o mau cheiro do pecado e da morte. Se, porém, são distribuídas aos pobres e restituídas aos próprios donos, fecundam a terra do espírito e fazem-na frutificar. Abismo é o coração do homem. Dele diz Jeremias: Depravado é o coração do homem e impenetrável; quem o poderá conhecer? (Jr 17,9). As fontes deste abismo são os pensamentos. Fecham-se quando é infundida a graça do Espírito Santo.
Sobre este assunto há concordância no segundo livro das Crônicas: Ezequias juntou muita gente, e taparam todas as fontes e o regato que corria por meio do território, dizendo: Não aconteça que venham os reis dos Assírios e encontrem abundância de água (2Cr 32,4). Ezequias é figura do justo, que deve juntar grande multidão de bons pensamentos e fechar as fontes dos pensamentos iníquos e perversos e o regato das concupiscências, não vão os demônios, logo que achem abundância de águas, por ela destruírem a cidade da alma. As cataratas do céu são as janelas. As janelas assim se chamam por trazerem luz ou porque através delas vemos para fora. Phós em grego significa luz. Na cabeça, colocada no firmamento, há dois luzeiros, dois olhos, semelhantes a duas janelas, através das quais vemos. Estão fechadas à vaidade do mundo quando na alma se infunde a luz da graça.
As chuvas, vocábulo parecido em latim com rios, são as palavras, que sem impedimento correm abundantes por toda parte. Refere Salomão nas Parábolas: O que começa brigas é como o que abre um dique de águas (Prov 17,14). E por isso aconselha o Eclesiástico: Não dês à tua água a mais ligeira abertura (Ecl 25,34). Estas águas são retidas quando, por graça do Espírito Santo, a língua se move para louvar o Criador e confessar o crime. Portanto, diz-se bem: E todos foram repletos do Espírito Santo.
16. E começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia se exprimissem. O que está cheio do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos de Cristo, tais como a humanidade, a pobreza, a paciência e a obediência. Falamos com estas virtudes quando as mostramos aos outros em nós mesmos. A linguagem é viva, quando falam as obras. Cessem, por favor, as palavras; falem as obras. Estamos cheios de palavras, mas vazios de obras, e, por isso, somos amaldiçoados pelo Senhor. Ele mesmo amaldiçoou a figueira em que não encontrou fruto, mas somente folhas. Ao pregador foi dada a lei, escreve São Gregório, de realizar aquilo que prega. Em vão se gaba do conhecimento da lei
quem destrói com as obras a doutrina. Mas, os Apóstolos falavam conforme o Espírito Santo lhes concedia se exprimissem. Ditoso o que fala segundo o dom do Espírito Santo, não segundo o seu ânimo. Há, de fato, alguns que falam do seu espírito; roubam as palavras dos outros e propõem-nas como próprias e atribuem-nas a si.(Santo Antônio de Lisboa, Obras completas, Vol. I, págs 505-509, Lello & Irmão – Editores,Porto – 1987.)Compilação: Frei Antônio Corniatti, OFM Conv
Natividade da Santíssima Virgem Maria
Exórdio

1. Digamos: A gloriosa Virgem Maria foi como a estrela da manhã entre as nuvens.Escreve o Eclesiástico: A beleza do céu é a glória das estrelas, que ilumina o mundo (Eclo 43, 10). Nestas três palavras observam-se os três fatos que resplandeceram admiravelmente na Natividade de Maria Santíssima. Primeiramente, a exultação dos Anjos, quando se diz: A beleza do céu. Conta-se que um homem santo, mergulhado em devota oração, ouviu a doce melodia dum canto angélico no céu. Passado um ano, no mesmo dia, voltou a ouvi-lo e perguntou ao Senhor que lhe revelasse o que vinha a ser aquilo. Foi-lhe respondido que nesse dia nascera Maria Santíssima. Por esse motivo, os Anjos no céu cantavam louvores ao Senhor. Esta a razão de se celebrar nesse dia a Natividade da gloriosa Virgem. Na segunda palavra observa-se o segundo fato, a pureza da sua Natividade, quando se afirma: A glória das estrelas. Assim como uma estrela difere de outra estrela em claridade (1Coríntios 15,41), assim a Natividade da Virgem Maria difere da natividade de todos os santos. Na terceira palavra observa-se o terceiro fato, a iluminação de todo o mundo, quando se diz: Que ilumina o mundo. A natividade da gloriosa Virgem iluminou o mundo, coberto de trevas e da sombra da morte. E por isso diz bem o Eclesiástico: Como estrela da manhã no meio da névoa etc. Maria Santíssima, mensageira do Salvador e perfeita em tudo 2. A estrela da manhã é chamada de Lúcifer, por luzir mais claramente entre todos os astros. Por isso é chamada a estrela por excelência. Lúcifer, precedendo o sol e anunciando a manhã, com a luz do seu fulgor afasta as trevas da noite. A estrela da manhã ou Lúcifer é Maria Santíssima, que, nascida no meio da névoa, afugentou a névoa tenebrosa, e na manhã da graça anunciou o sol da justiça aos que habitavam nas trevas. Dela diz o Senhor a Jó És tu porventura que fazes aparecer a seu tempo a estrela da manhã (Jó 38,32).Quando chegou o tempo da misericórdia (Salmo 101,14), o tempo de edificar a casa do Senhor, o tempo aceitável e o dia da salvação, o Senhor fez aparecer a estrela da manhã, Maria Santíssima, para luz dos povos. Os povos devem dizer o que disseram a Judite, como se lê no seu livro: O Senhor abençoou-te com a sua fortaleza, porque ele por ti aniquilou os nossos inimigos… Ó filha, tu és bendita do Senhor Deus altíssimo, sobre todas as mulheres que há sobre a terra. Bendito seja o Senhor, que criou o céu e a terra, que te dirigiu para cortares a cabeça ao príncipe dos nossos inimigos. Porque hoje engrandeceu o teu nome tanto, que nunca o teu louvor se apartará da boca dos homens (Judite 13, 22-25). Foi, portanto, Maria Santíssima, na sua Natividade, como a estrela da manhã. Dela diz ainda Isaías: Sairá uma vara do tronco de Jessé, e uma flor brotará da sua raiz (Isaías 11, 1). Repare-se que Maria Santíssima se chama vara, por causa das cinco propriedades que esta possui: é longa, reta, sólida, grácil e flexível. Maria Santíssima foi longa na contemplação, reta na perfeição da justiça, sólida na estabilidade do entendimento, grácil na pobreza, flexível na humildade. Esta vara saiu da raiz de Jessé, pai de Davi, de quem proveio Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo (Mateus 1, 16). Por isso se lê no Evangelho de hoje: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi (Mateus 1,1).
3. Sairá uma vara da raiz de Jessé e uma flor sairá das suas raízes. Vejamos o que significam, no sentido moral, as três palavras: raiz, vara, flor. A raiz significa a humildade de coração; a vara, a retidão da confissão e a disciplina da satisfação; a flor, a esperança da felicidade eterna. Jessé interpreta-se ilha ou sacrifício, e significa o penitente, cujo espírito deve ser uma espécie de ilha. Chama-se ilha, por estar situado no sal, isto é, no mar. O espírito do penitente situa-se no mar, ou seja, na amargura. O penitente é batido pelas ondas das tentações e, todavia, fica firme. E oferece ao Senhor um sacrifício em odor de suavidade. A raiz de Jessé é a humildade da contrição, de que sai a vara da confissão reta e a disciplina da discreta mortificação. E observe-se que a flor não brota do cimo da vara, mas da raiz. Uma flor brotará da sua raiz, porque a flor, ou a esperança da felicidade eterna, brota, não da mortificação do corpo, mas da humildade do espírito. Com tudo isto concorda o que se lê no Evangelho de hoje, em que São Mateus, descrevendo a geração de Cristo, primeiro põe Abraão, em segundo lugar Davi, em terceiro a transmigração da Babilônia. Abraão que disse: Falarei ao meu Senhor, embora eu seja pó e cinza (Gênesis 18, 27), designa a humildade do coração; Davi, cujo coração reto esteve com o Senhor: Encontrei Davi, um homem segundo o meu coração
(Atos 13, 22), a retidão da confissão; a transmigração de Babilônia, a disciplina da mortificação e a tolerância da tribulação. Se existirem em ti estas três gerações, conseguirás a quarta geração, a de Jesus Cristo, que nasceu da Virgem Maria, de cuja Natividade se diz hoje: Como a estrela da manhã no meio da névoa. 4. E enfim: E como a lua cheia brilha durante a sua vida. Maria Santíssima chama-se lua cheia, porque perfeita sob todos os aspectos. A lua é imperfeita no quarto crescente ou minguante, porque tem mancha e pontas. Mas a gloriosa Virgem nem na sua Natividade teve mancha, porque foi santificada no ventre materno e guardada pelos Anjos, nem durante a vida possuiu as pontas da soberba, e, por isso, brilha plena e perfeita. Chama-se luz, por diluir as trevas. Rogamos-te, portanto, Senhora nossa, que tu, Estrela da manhã, afastes com o teu esplendor a névoa da sugestão diabólica, que encobre a terra do nosso espírito; tu que és a lua cheia, enchas o nosso vazio, diluas as trevas dos nossos pecados, a fim de que mereçamos chegar à plenitude da vida eterna, à luz da glória sem falha. Auxilie-nos o Senhor, que te criou para seres a nossa luz.

Para nascer de ti, fez-te nascer hoje. A Ele seja prestada honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém. Santo Antônio de Lisboa, Obras Completas, Lello & Irmão- Editores, 1987, Volume I, pp. 901-905.
Compilação: Frei Antônio Corniatti, OFM Conv

Sermão aos penitentes ou religiosos e a confissão
1. Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Haverá sinais no sol , na lua e nas estrelas (Lc21,25). 2. Diz Isaías: Naquele dia achar-se-á o germe do Senhor em magnificência e o fruto da terra é sublime (Is. 4,2). Esta expressão é aplicada, no sentido moral, ao pecador convertido. O dia é o sol que resplende sobre a terra. Quando o sol da graça ilumina a terra, isto é, a mente do pecador, então ela produz por si só o germe do Senhor, que simboliza a contrição. Com efeito, Isaías diz: A chuva e a neve descem do céu e inebriam a terra e fecundam-na e fazem-na germinar, a fim de que dê semente ao que semeia e pão ao que come (Is 55,10). A chuva e a neve representam a graça do Espírito Santo. Como a chuva e a neve, a graça desce do céu, isto é, da misericórdia divina. E inebria a terra, quer dizer, o pecador voltado para as coisas da terra, a fim de que a elas se torne insensível; se arrependa até às lágrimas e se manifeste o segredo do seu pecado.
De fato, a embriaguez produz estes três efeitos: torna insensível, provoca as lágrimas, e descobre os segredos. E fecundam-na com o espírito de pobreza, da qual diz Isaías: Sobre nós se derrame o espírito lá do alto (Is 32,15), para que não arda, como refere Jó, sobre ela a sede da cobiça (Jó 18,9). E a faz germinar maravilhosamente. Isto acontece quando o pecador se arrepende de modo absoluto de todos os pecados cometidos e de todas as omissões. Então, produz a semente das boas obras ao que semeia, ou seja, ao penitente que semeia entre lágrimas; e pão ao que come porque colherá em meio à alegria. Portanto, naquele dia achar-se-á o germe do Senhor em magnificência. E em glória.
Do germe da contrição procede a glória da confissão. Desta escreve Isaías à alma penitente: Ser-lhe-á dada a glória do Líbano, a formosura do Carmelo e de Saron (Is.35,2). Líbano se interpreta a brancura;
Carmelo, a circuncisão; e Saron, o canto de tristeza. A confissão produz estes três efeitos: branqueia a alma, elimina as coisas supérfluas e chorando, canta tristemente a melodia: A minha alma está triste até à morte (Mt 26,38). De fato, a mulher quando dá à luz está em tristeza (Jo 16,21). Da brancura da alma, livre do pecado, diz Isaías: Isto acontecerá quando o Senhor tiver limpado as manchas das filhas de Sião e lavado o sangue do meio de Jerusalém com espírito de justiça e em espírito de ardor (Is 4,4). As manchas indicam a imundície dos pensamentos. De fato, diz Jeremias: As suas manchas chegam até aos seus pés (Lam 1,9), isto é, aos afetos; o sangue significa a luxúria da carne, que o Senhor limpou às filhas de Sião, isto é, às almas de Sião, as almas que pertencem à Igreja; com espírito de justiça, que é a confissão, na qual o penitente se julga e se condena a si mesmo; e em espírito de ardor, que é a contrição, pela qual a alma abrasada prorrompe em lágrimas de compunção. Sobre as coisas supérfluas que devem ser eliminadas pela confissão, Isaías diz: Naquele dia, o Senhor, com uma navalha afiada, ou tomada emprestada, conduzida contra aqueles que estão da banda de além do rio, rapará a cabeça, o pêlo dos pés e a barba toda (Is 7,4). A navalha, como que faz o homem novo, significa a confissão, que realmente torna novo o espírito do
homem. Diz Jeremias: Preparai o terreno abandonado e não semeeis sobre espinhos (Jr 4,3), para que estes ao nascer não vão sufocar a palavra da confissão. Esta navalha se diz afiada, ou tomada emprestada: afiada, porque corta o pecado e as suas circunstâncias; tomada emprestada, porque o pecador, na obra da sua salvação, deve como que emprestá-la por uma certa soma, que é a devoção e a humildade. Com esta navalha, o Senhor rapará a cabeça dos que estão da banda de além do rio, os que transpuseram o rio, ou
seja, os que receberam o batismo. A cabeça e os pés significam o princípio e o fim da vida; a barba significa a intrepidez em praticar as boas obras. Com o corte afiado de uma verdadeira confissão, o Senhor rapa no penitente os vícios, significados nos pêlos, desde o início da sua conversão até o fim de sua vida. Rapa ainda toda a barba¸ a fim de que não confie em nenhuma obra realizada, como se fora dele próprio. Devemos confiar, pois, só naquele que nos fez, e não naquilo que nós fizemos. Quem nos fez é todo o bem, o sumo bem; mas, o bem feito por nós assemelha-se ao pano de uma mulher menstruada. Pensa, pois, tu mesmo em que bem se deve confiar. Na verdade, deve-se confiar no bom Senhor Jesus, de quem o profeta diz: Tu és bom (Salmo 118,68).
Escreve Isaías do canto de tristeza: Pela colina de Luit subirá cada um chorando e pelo caminho de Oronaim irão dando gritos de aflição(Is 15,5). E o fruto da terra é sublime. O fruto da terra é a satisfação da penitência. Diz Isaías: Todo o fruto será a expiação do seu pecado (Is 27,9). O fruto da terra é sublime, quando o penitente é humilde, humilhando-se ao sublime e humilde verdadeiro sol, Cristo, que escondeu o esplendor da sua luz com o cilício da nossa condição mortal. Por isso, o Evangelho de hoje diz: Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas.
Santo Antônio de Lisboa, Obras Completas, Lello & Irmão – Editores, 1987 Compilação: Frei Antônio Corniatti, OFM Conv

Natal do Senhor: o Nascimento do Salvador
5. O Nascimento do Salvador: E aconteceu que enquanto lá estavam (Lc 2,6). Onde é o lá? Na casa do pão; e Maria é a casa do pão. O pão dos anjos se transformou em leite para os pequeninos, para que os pequeninos se tornassem Anjos. Deixai, portanto, as crianças virem a mim (Mc 10,14) para que suguem e sejam saciados no seio da sua consolação. Veja: o leite é de sabor doce e de aspecto agradável! Assim Cristo, como diz o Boca de Ouro (São João Crisóstomo), com a sua doçura atraía a si os homens, assim como o diamante atrai o ferro. Ele diz de si mesmo: Os que me comem terão mais fome e os que me bebem terão mais sede (Eclesiástico 24,29). É ainda de aspecto agradável: Para Ele os Anjos desejam olhar (cf 1Pd 1,12). Completaram-se os dias em que devia dar à luz (Lc 2,6). Eis a plenitude do tempo (cf Gl 4,4), o dia da salvação (cf 2Cor 6,2), o ano da benignidade (cf Sl 64,12). Desde a queda de Adão até a vinda de Cristo foi tempo vazio. De fato diz Jeremias: Olhei para a terra e eis que estava vazia e sem nada (Jr 4,22), porque o Diabo tinha destruído tudo; foi dia de dor ou de enfermidade; diz o Salmo: Sempre estiveste perto da cama da sua dor (Sl 40,5); foi ano de maldição, de fato é dito no livro do Gênesis: Maldita seja a terra nas tuas obras
(Gn 3,17). Hoje, porém, cumpriram-se os dias de dar à luz. Da plenitude deste dia todos nós recebemos. E o Salmo: Seremos cheios dos bens da tua casa (Sl 65,5). A ti, Virgem Santíssima, seja dado louvor e glória, porque hoje fomos cheios pela bondade da tua casa, ou seja, do teu ventre. Antes vazios, estamos agora cheios; antes enfermos, agora sãos; antes amaldiçoados, agora abençoados; porque como se diz nos Cânticos: O que vem de ti é um paraíso (Ct 4,13).
6. Continua o Evangelista: E deu à luz o seu Filho primogênito (Lc 2,7). Eis a bondade, eis o paraíso. Correi, portanto, famintos, avarentos e usurários, para quem o dinheiro vale mais do que Deus, e comprai sem dinheiro e sem nenhuma permuta (Is 55,1) o grão de trigo, que hoje a Virgem tirou do tesouro do seu ventre. Deu, portanto, à luz um Filho. Que Filho? O Filho de Deus, Ele mesmo Deus. Ó felicidade acima de toda felicidade! Deste um Filho a Deus Pai! Qual não seria a glória duma mulher pobrezinha, se desse um filho a um imperador deste mundo? Quão maior não é a glória de Maria Virgem que deu um Filho a Deus Pai! Deu à luz o seu Filho. O Pai deu a divindade; a Mãe, a humanidade; o Pai, a majestade; a Mãe, a fraqueza. Deu à luz um Filho, o Emanuel, ou seja, o Deus conosco (cf Mt 1,23). Quem, portanto, está contra nós (cf Rm 8,31). Como escreve Isaías: E pôs sobre a sua cabeça o capacete da salvação (Is 59,17). O capacete é a humanidade; a cabeça, a divindade. A cabeça escondida debaixo do capacete é a divindade escondida debaixo da humanidade. Não se deve, portanto, ter medo. A vitória está da nossa parte, porque conosco está Deus armado. Graças sejam dadas a ti, Virgem gloriosa. Por teu intermédio, Deus está conosco. Deu, portanto, à luz o seu Filho primogênito, gerado do Pai antes de todos os séculos, ou o primogênito dentre os mortos, ou então, o primogênito entre muitos irmãos (cf Rm 8,29).
7. E envolveu-o em panos e reclinou-o numa manjedoura (Lc 2,7). Ó pobreza! Ó humildade! O Senhor do universo é envolvido em paninhos; o Rei dos anjos é reclinado num estábulo. Envergonha-te, insaciável avareza! Desaparece, ó soberba humana! Envolveu-o em panos. Note-se que Cristo no princípio e no fim da vida é envolvido em panos. José (de Arimatéia) diz São Marcos, tendo comprado um lenço e tirando-o da cruz, envolveu-o num lençol (Mc 15,46). Feliz aquele que terminar a sua vida envolvido nos panos da inocência batismal! O velho Adão, quando foi expulso do paraíso terrestre, vestiu uma túnica de peles (cf Gn 3,21). Esta, quanto mais se lava, tanto mais se gasta. Isto significa a carnalidade de Adão e dos seus descendentes. O novo Adão, porém, foi envolvido em panos. O seu brilho representa-nos a pureza da sua Mãe, a inocência batismal e a glória da ressurreição final. E reclinou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para ele na estalagem (Lc 2,7). Eis, como está escrito no livro dos Provérbios, a corça é benquista e o veado é cheio de graça (Pr 5,19). Diz a História Natural que a corça dá à luz em caminho freqüentado. Também a Virgem Santa deu à luz no caminho, porque não havia lugar na estalagem (Lc 2,8). A estalagem se diz em latim diversorium, porque para este lugar se chega por diversos caminhos. Santo Antônio de Lisboa, Obras Completas, Vol II, pp 621-624. Lello e Irmão – editores, 1987. Compilação de Frei Antônio Corniatti, OFM Conv

Dos Sermões de Santo António de Lisboa, presbítero
(I, 226) (Sec. XIII)
A linguagem é viva, quando falam as obras

Quem está cheio do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos sobre Cristo, como a humildade, a pobreza, a paciência e a obediência; falamo-las, quando mostramos aos outros estas virtudes na nossa vida. A linguagem é viva, quando falam as obras. Cessem, portanto, as palavras e falem as obras. De palavras estamos cheios, mas de obras vazios; por este motivo nos amaldiçoa o Senhor, como amaldiçoou a figueira em que não encontrou fruto, mas somente folhas. Diz São Gregório: «Há uma norma para o pregador: que faça aquilo que prega». Em vão pregará os ensinamentos da lei, se destrói a doutrina com as obras. Mas os Apóstolos falavam conforme a linguagem que o Espírito Santo lhes concedia. Feliz de quem fala conforme o Espírito Santo lhe inspira e não conforme o que lhe parece!
Há alguns que falam movidos pelo próprio espírito e, usando as palavras dos outros, apresentam-nas como próprias, atribuindo-as a si mesmos. Desses e de outros como eles, fala o Senhor pelo profeta Jeremias: Eis- Me contra os profetas que roubam uns aos outros as minhas palavras. Eis-Me contra os profetas, oráculo do Senhor, que forjam a sua linguagem para proferir oráculos. Eis-Me contra os profetas que profetizam sonhos mentirosos – oráculo do Senhor – e, contando-os, seduzem o povo com mentiras e jactância, não os tendo Eu enviado nem dado ordem alguma a esses que não são de nenhuma utilidade para este povo – oráculo do Senhor.
Falemos, por conseguinte, conforme a linguagem que o Espírito Santo nos conceder; e peçamos-lhe, humilde e devotamente, que derrame sobre nós a sua graça, para que possamos celebrar o dia de Pentecostes com a perfeição dos cinco sentidos e a observância do decálogo, nos reanimemos com o forte vento da contrição e nos inflamemos com essas línguas de fogo que são os louvores de Deus, a fim de que, inflamados e iluminados nos esplendores da santidade, mereçamos ver a Deus trino e uno.
O fingido e o verdadeiro morto
Os Fioretti (Pequenas flores) foram escritos em latim, no século XIII, recolhendo historietas e milagres que se contavam de Francisco de Assis. Também nasceram “Fioretti” em torno da vida de Antônio, de Lisboa ou de Pádua. O “Livro dos Milagres” foi escrito por Arnaldo de Serranno, na segunda metade do século XIV, dentro da visão e da mentalidade da época, que todos sabemos compreender. Selecionamos aqui “O fingido e o verdadeiro morto”.
Durante o seu giro missionário pelo Friuli e pela Ístria, Santo Antônio chegou aos arredores de Údine. Lá os franciscanos ainda não eram conhecidos. Ele mesmo era uma figura que suscitava mais desconfiança do que simpatia, mais aversão do que acolhimento. Desejoso de pregar ao povo, trepou numa árvore. Todavia, como referem as tardias tradiçôes locais, em vez de provocar ao menos a curiosidade dos que se achegavam, causou entre o povo reações de insolência, caçoadas e insultos. O Santo jamais enfrentara tal situação na sua vida de pregador. Por isso, imitando o gesto de indignação ensinado por Cristo, sacudiu a poeira dos pés e se afastou. Impressionado, o povo se arrependeu de sua aspereza e acabou abrindo o coração a uma sincera devoção para com o arauto de Cristo. Passou então a Gemona, onde sua pregação colheu grandes frutos entre a população. Aquela gente o levou a erigir uma capela em honra da Virgem Santíssima. Para construí-la iniciaram-se os trabalhos numa atmosfera de intenso entusiasmo. As despesas, naturalmente, corriam por conta das esmolas livres dos devotos.
Um belo dia passou por aquelas paragens um agricultor guiando uma carroça. Antônio lhe pediu ajuda no transporte de pedras. Respondeu o camponês que não podia fazê-lo, porque, infelizmente, estava levando para o cemitério o corpo do seu próprio filho que jazia no fundo do carro. “Seja como dizeis”, replicou o Santo. O vilão prosseguiu sua viagem. Chegando a uma distância onde não podia ser ouvido pelo homem de Deus, aproximou-se do rapaz e o despertou, para juntos rirem-se do frade. Mas o sorriso se lhe apagou súbito na boca, pois, por mais que o chamasse e sacudisse, o jovem não respondeu. Estava morto de fato. Assaltado pelo remorso, o camponês zombeteiro apressou-se em retornar ao Santo, e, entre gemidos, lhe contou tudo. Antônio se enterneceu e confortou o pobre homem. Então, aproximando-se da carroça, com um sinal da cruz, devolveu o jovem à vida.

Sobre Paz e Bem
Peçamos humildemente a Jesus Cristo que nos conceda alegrar-nos só nele, viver modestamente, menosprezar as inquietações do mundo, manifestar-lhe todas as nossas necessidades, a fim de que, protegidos por sua paz, possamos um dia viver na pacífica Jerusalém do céu. Auxilie-nos aquele que é bendito e glorioso pelos séculos eternos. E toda alma pacífica diga: Amém! Aleluia! (3Ad 6d).Busca a paz dentro de ti, em ti mesmo; se a encontrares, terás paz com Deus e com o próximo (5Pn 16a).
Os olhos misericordiosos do Senhor estão sobre os que procuram a paz (5Pn 16a). Coisas necessárias a qualquer justo: a paz do coração, a separação dos bens terrenos, o silêncio da boca, o êxtase da contemplação, a lembrança da própria fragilidade (Pp 18c).
O azeite é o mais excelente de todos os líquidos; a paz de consciência excede o gozo dos bens temporais (Ft 15a). Quem possuir a paz do coração merece de verdade ser chamado filho de Deus Pai, ao qual, juntamente com seu Unigênito, diz na hora da morte: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, porque da paz do coração passa à paz da eternidade (23Pn 18a). Quem em vida estabelecer com o Senhor a aliança da reconciliação, depois, no reino celeste, repousará na formosura da paz (9Pn 15c).De Deus provém todo o bem que nós possuímos (6Pn 12b). O bem é sempre simples (l0Pn 13a). Jesus Cristo é o Bem, o bem substancial, de quem todas as coisas prendem bondade. Tudo o que há e se move, vive ou existe no céu, como nos anjos, na terra ou debaixo da terra, no ar, na água, dotado de inteligência e de razão, procede daquele Sumo Bem, causa de todas as coisas e fonte de bondade (Ft 9a). A coroa de todo o bem é a humildade (1Qr2 4c). Afasta-te do mal, mas isto ainda não basta: é preciso praticar o bem (5Pn 16a). Note-se que há quatro espécies de orgulho: quando alguém possui um bem e julga ter ele vindo de si mesmo; ou, se dado por Deus, considera-o dado em razão dos seus méritos; ou jacta-se de possuir o que não possui; ou despreza os outros e procura pôr em evidência o que possui (11Pn 3a). Do Livro “Ensinamentos e Admoestações de Santo Antônio de Pádua”, Vozes, 1999.

Fontes Franciscanas
III
SANTO ANTÔNIO DE LISBOA
Volume I
Biografia e Sermões
Livro de 1998
Tradução: Frei Henrique Pinto Rema, OFM

Sermão do Quarto Domingo da Quaresma

SUMÁRIO
O Evangelho, no quarto domingo da Quaresma, é o dos cinco pães.
Em primeiro lugar, um sermão ao pregador: Lança o teu pão.
Um sermão para exprobrar o pecado: Judá, pelo seu pastor Odolamita; e sobre a fração dos cinco pães e seu significado.
Um sermão sobre os cinco côvados da mirra: Com cinco pães; e sobre os cinco irmãos de Judá e seu significado.
Um sermão sobre o amaldiçoado número quatro e sobre a reunião dos cinco e seu significado: A terra estremece com três coisas.

Exórdio. Sermão aos pregadores.
1. Com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens etc1.
Aos pregadores fala Salomão no Eclesiastes2: Lança o teu pão sobre as águas que passam, e depois de muito tempo o acharás. As águas que passam são os povos a correr para a morte3. Por isso, diz a mulher de Técua no segundo livro dos Reis4: Todos corremos como água. Escreve Isaías5: Este povo rejeitou as águas de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasim e em Face, filho de Romélia. Siloé interpreta-se enviado; portanto, as águas de Siloé são a doutrina de Jesus Cristo6, enviado do Pai. Rejeitam esta água os que se perdem em desejos terrenos e se apóiam em Rasim, isto é, no espírito soberbo, e em Face, ou seja, na imundície da luxúria. E por esta razão correm como água para o profundo da Geena. Portanto, sobre as águas que passam, ó pregador, lança o teu pão, o pão da palavra de Deus, do qual se diz: Não só de pão7 etc. E Isaías8: Foi-lhe, isto é, ao justo, dado o pão; depois de muito tempo, no dia do juízo, achá-lo-ás, ou seja,encontrarás o que te dará em troca dele. Em nome do Senhor, lançarei o pão sobre as águas, compondo por vosso amor, sobre os cinco pães e dois peixes, um pequeno sermão.

Os cinco pães e os dois peixes.
2. Digamos, portanto: Com cinco pães e dois peixes etc. Os cinco pães são os cinco livros de Moisés9, em que se encontram as cinco refeições da alma. O primeiro pão é detestar o pecado na contrição; o segundo é revelá-lo na confissão; o terceiro é a miséria e humilhação de si mesmo na satisfação; o quarto é o zelo das almas na pregação; o quinto é a doçura da pátria celeste na contemplação.
Acerca do primeiro pão lê-se no primeiro livro, no Gênesis10, que Judá mandou um cabrito a Tamar pelo seu pastor Odalamita. Judá interpreta-se o que se confessa e significa o penitente11, que deve enviar o cabrito, isto é, a detestação do pecado12. Tamar, que se interpreta amarga, trocada, palmeira13, é a alma penitente14, em cuja tripla interpretação se designa o triplo estado dos penitentes. Chama-se amarga relativamente ao estado dos incipientes; trocada, dos proficientes; palmeira, dos perfeitos. Odolamita interpreta-se testemunho pela água15 e significa a compunção das lágrimas pelas quais o penitente testemunha que detesta o pecado e promete não voltar a cometê-lo. E assim desta Tamar, como diz S. Mateus16, poderá Judá gerar Farés e Zara. Farés interpreta-se divisão; Zara, oriente17. O penitente deve antes separar-se do pecado e depois tender à iluminação das boas obras. Declina, diz o Profeta18, do mal: eis Farés; e faz o bem: Eis Zara.
Acerca do segundo pão lê-se no segundo livro de Moisés, no Êxodo19, que Moisés escondeu debaixo da areia o egípcio morto. Moisés interpreta-se aquático20 e significa o penitente, flutuando nas água da compunção. Ele deve matar o egípcio, isto é, o pecado mortal, na contrição, e escondê-lo debaixo da areia na confissão. Escreve, pois, S. Agostinho21: Se tu te descobres, Deus cobre-te; se tu te cobres, Deus descobre-te. Esconde, portanto, o egípcio quem descobre o seu pecado. Esconde-o para Deus e descobre-o ao sacerdote. Daí o dizer-se no Gênesis22 que Raquel escondeu os ídolos de Labão. Raquel interpreta-se ovelha. Esta é a alma penitente, que deve esconder os ídolos, isto é, os pecados mortais, de Labão, ou seja, do diabo. Bem-aventurados aqueles, diz o Profeta23, cujos pecados foram cobertos.
Acerca do terceiro pão lê-se no terceiro livro de Moisés, no Levítico24, onde se manda aos sacerdotes: O papo e as penas lançá-los-ás no lugar das cinzas para o lado do Oriente. O papo simboliza o ardor e a sede da avareza, da qual escreve Job25: Uma sede ardente atormentará o avarento. A pena designa a leveza da soberba26. A pena, escreve Job27, do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhante às penas da cegonha e do falcão, isto é, do varão contemplativo28. São lançadas no lugar das cinzas quando pensamos de coração compungido na palavra da maldição: És cinza, e à cinza hás-de voltar29. O lado do Oriente é a vida eterna, da qual nos separamos por causa dos primeiros pais30. Humilha-se, portanto, o penitente na satisfação e lança fora de si o papo da avareza e a pena da soberba quando traz à memória o eulógio31 da primeira maldição e geme todos os dias, prostrado diante dos olhos de Deus.
Acerca do quarto pão lê-se no quarto livro, o dos Números32, que Fineias, tomando um punhal, atravessou os dois fornicadores pelas partes genitais. Finéias é o pregador, que tomando o punhal, isto é, a palavra da pregação, deve atravessar os fornicadores nas partes genitais, para que, descoberta e como que lançada em rosto a sua torpeza, se envergonhem do crime cometido33. Revelarei, diz o Senhor por boca do seu Profeta34, diante da tua face as partes vergonhosas. Cobre os seus rostos de ignomínia, diz David35.
Acerca do quinto pão lê-se no quinto livro, o Deuteronômio36, que Moisés subiu das planícies do Moab ao monte Abarime aí morreu diante de Deus. Moisés é o penitente. Sobe das planícies de Moab, que se interpreta do pai37. Quer dizer, deve deixar a vida dos carnais, provenientes do pai diabo, e subir ao monte Abarim, que se interpreta passagem38, ou seja, a excelência da contemplação, para que passe deste mundo ao Pai39.
Estes são os cinco pães de que se diz: Com cinco pães e dois peixes.

3. Estes são os cinco côvados da mirra. Escreve Solino40 que na Arábia há uma árvore chamada mirra, de cinco côvados de altura. Arábia interpreta-se sagrada41 e significa a santa Igreja, na qual há a mirra da penitência que eleva o homem das coisas terrenas cinco côvados, que são os cinco pães evangélicos. Estes são os cinco irmãos de Judá, a respeito dos quais diz Jacob no Gênesis42: Judá, louvar-te-ão os teus irmãos; são eles: Ruben, Simeão, Levi, Issacar, Zabulão. Ruben interpreta-se vidente; Simeão, audição; Levi, ajuntado; Issacar, recompensa; Zabulão, casa de fortaleza43.
Tenha, portanto, Judá um irmão chamado Ruben, para que veja na contrição com aqueles sete olhos a que se refere Zacarias44: Numa só pedra, ou seja, no penitente, que deve ser pedra pela constância e um só pela unidade da fé,havia sete olhos. Com o primeiro deles deve ver o passado, para o chorar; com o segundo, o futuro, para dele se acautelar; com o terceiro, as coisas prósperas, para não o ensoberbecerem; com o quarto, as adversas, para não o deprimirem; com o quinto, as coisas superiores, para as saborear; com o sexto, as inferiores, para as tornar insípidas; com o sétimo, as interiores, para se comprazer em Deus.
Tenha, portanto, um segundo irmão de nome Simeão ao confessar-se, para que o Senhor ouça a sua voz, como diz Moisés no Deuteronômio45: Ouve, Senhor, a voz de Judá. Dela se lê nos Cânticos46: Ressoe a tua voz aos meus ouvidos, pois que a tua voz é doce.
À contrição e à confusão se ajunte o terceiro irmão, Levi, na satisfação, a fim de que a medida da pena corresponda à culpa47. Fazei, diz, dignos frutos de penitência48. No Sinai, de fato, que se interpreta medida49, foi dada a lei. A lei da graça é dada àquele cuja penitência se mede de conformidade à culpa.
Tenha ainda um quarto irmão, Issacar, para que, incendiado pelo zelo das almas, receba a recompensa da eterna felicidade. Mas o tronco inútil, a ocupar terreno, e o fátuo idiota, a entravar um lugar na Igreja, receba, não a recompensa da vida eterna, mas a amargura da morte eterna.
Todavia, por favor, tenha um quinto irmão, Zebulão, para que, habitando na casa da contemplação, juntamente com o simples Jacob50, mereça tomar gosto à doçura celeste.
Estes são os cinco pães, de que diz: Com cinco pães e dois peixes etc.

4. Os dois peixes representam a inteligência e a memória, que devem servir de condimento aos cinco livros de Moisés, para que entendas o que lês e confies ao tesouro da memória o que entendes. Ou então, os dois peixes, tirados da profundeza do mar para a mesa do rei, são Moisés e Pedro. O nome Moisés vem da água de que fora tirado51; e Pedro o pescador é elevado à dignidade de Apóstolo. A Sinagoga foi encomendada àquele; a Igreja, a este. A Sinagoga e a Igreja são Sara e Agar, das quais se escreve na Epístola52 de hoje:Está escrito que Abraão teve dois filhos etc. A escrava Agar, que se interpreta solene, significa a Sinagoga, que se gloriava na observância da lei, como se foram coisas solenes. Sara, que se interpreta carvão, significa a santa Igreja53, inflamada no dia de Pentecostes pelo fogo do Espírito Santo. O filho de Agar é o povo judeu, que luta com o filho de Sara, o povo dos crentes54.
Por outras palavras, Sara, que se interpreta princesa55, é a parte superior da razão, que deve comandar, como a senhora manda na escrava. A escrava é a sensualidade, representada por Agar, que se interpreta abutre56. Com efeito, a sensualidade, qual abutre, segue os cadáveres dos desejos carnais. O filho de Agar, isto é, o movimento da carne, persegue o filho de Sara, ou seja, o movimento da razão. E isto é o que diz o Apóstolo57: A carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne, de forma a pô-la fora juntamente com o seu filho. Por isso, diz-se: Põe fora a escrava e o seu filho58. Efetivamente, a carne, carregada com os bens da natureza e opulenta com as vantagens temporais, insurge-se contra a senhora. Sucede então o que diz Salomão nas Parábolas59: A terra estremece com três coisas e uma quarta não a pode suportar: com um escravo que chega a reinar; com um insensato farto de alimento, com uma mulher odiosa que um homem desposou, e com uma escrava que se torna herdeira de sua senhora. O escravo que chega a reinar é o corpo recalcitrante. O insensato farto de alimento é a alma inebriada de delícias. A mulher odiosa são as más obras; é recebida em matrimônio quando o pecador cai na cilada do mai hábito. E desta forma a escrava Agar, a sensualidade, torna-se herdeira da sua senhora, a razão. Mas para que este domínio infeliz acabe, com cinco pães e dois peixes saciou o Senhor cinco mil homens.

5. Acerca deste assunto há concordância no Intróito da missa: Alegra-te, Jerusalém, e reuni-vos60 etc. Nota que para o número de cinco mil homens há cinco reuniões. A primeira foi celebrada no céu; a segunda, no paraíso; a terceira, no monte das Oliveiras; a quarta, em Jerusalém; a quinta, em Corinto.
Na primeira reunião nasceu a discórdia. Com efeito, o primeiro anjo, antes monge branco, depois monge negro, porque primeiro lúcifer, depois tenebrífero, semeou a cizânia da discórdia nas fileiras dos seus irmãos. No corro da concórdia, de fato, começou a cantar a antífona da soberba, partindo do mais alto, em vez do mais baixo. Subirei, diz,ao céu, para aí ser igual ao Pai, e serei semelhante ao Altíssimo61, isto é, ao Filho. E enquanto desta forma cantava altaneiramente e entumecia as veias do coração, caiu irrecuperavelmente: o firmamento não pôde suster a sua soberba62.
Na segunda reunião do paraíso nasceu a desobediência, por causa da qual os protoparentes foram lançados à miséria deste exílio.
Na terceira, nasceu a simonia. Consiste ela em comprar ou vender o espiritual ou o que é anexo ao espiritual63. Ora, que coisa mais espiritual e mais santa do que Cristo? Cremos que Judas, ao vendê-lo, incorreu no pecado de simonia, e por isso, suspenso dum laço rebentou o ventre. Assim todo o simoníaco, se não se sujeitar e fazer verdadeira penitência, suspenso do laço da eterna condenação, arrebentará o ventre pelo meio64.
Na quarta reunião, a pobreza foi desonrada, quando Ananias e Safira subtraíram para eles parte do preço do campo vendido, mentido ao Espírito Santo65. E por isso imediatamente sofreram a sentença do manifesto ultraje. Desta maneira, se os que tiverem renunciado aos próprios bens, marcando-se com o selo da santa pobreza, quiserem reedificar a Jericó destruída66, sofrerão eternamente o impropério da maldição.
Na quinta, foi lesada a castidade. Lê-se na epístola aos Coríntios67 que Paulo não duvidou ferir, para morte da carne, com a sentença de excomunhão aquele fornicador que tomara a mulher do pai.
Vós, porém, membros da Igreja, cidadãos da Jerusalém celeste, fazei uma reunião dividida em cinco partes, de que serão banidos estes cinco crimes: a cizânia da discórdia, a loucura da desobediência, a concupiscência da simonia, a lepra da avareza e a imundície da luxúria. Assim merecereis ser saciados com cinco pães e dois peixes entre cinco mil homens e gozar da perfeição do número milenário. Ajude-nos aquele que é bendito por séculos de séculos. Assim seja.

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